Comentários da semana

 


Texto-fonte:

Obra Completa, Machado de Assis,

Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938.

 

Publicado originalmente o Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, de 01/11/1861 a 05/05/1862.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 DE NOVEMBRO DE 1861.

Prefácio político – Exposição – Ensino Praxedes

Coroa ao Dr. Pinheiro Guimarães – O mágico Felipe –

Regata - Comemoração de defuntos.

 

O que há de política? É a pergunta que naturalmente ocorre a todos, e a que me fará o meu leitor, se não é ministro. O silêncio é a resposta. Não há nada, absolutamente nada. A tela da atualidade política é uma paisagem uniforme; nada a perturba, nada a modifica. Dissera-se um país onde o povo só sabe que existe politicamente quando ouve o fisco bater-lhe à porta.

 

O que dá razão a este marasmo? Causas gerais e causas especiais. Foi sempre princípio nosso do governo aquele fatalismo que entrega os povos orientais de mãos atadas às eventualidades do destino. O que há de vir, há de vir, dizem os ministros, que, além de acharem o sistema, cômodo, por amor da indolência própria, querem também pôr a culpa dos maus acontecimentos nas  costas da entidade  invisível e misteriosa, a que atribuem tudo. 

 

Dizem, é verdade, que há tal ministro que, adotando politicamente aquele princípio, descrê da sua legitimidade quando se trata da sua pessoa, e que, longe de esperar que a chuva lhe traga água, vai á própria fonte buscar com que estancar a sede. O leitor vê bem o que há de profundamente injurioso em semelhante proposição, e facilmente compreenderá o sentimento que me leva não insistir neste ponto.

 

Mas, seja ou não assim, o que nos importa saber é que os nossos governos são, salvas as devidas exceções, mais fatalistas que um turco de velha raça. Seria este ministério uma exceção? Não; tudo nele indica a filiação que o liga intimamente aos da boa escola. É um ministério-modelo; vive do expediente e do aviso; pouco se lhe dá do conteúdo do ofício, contanto que tenha observado na confecção dele as fórmulas tabelioas; dorme á noite com a paz na consciência, uma vez que de manhã tenha assinado o ponto na secretaria.

 

Está dada a razão por que subiu no meio das antífonas e das orações dos amigos, apesar dos travos de fel com que alguns quiseram fazer-lhe amargar a taça do poder. Diziam estes: “É um ministério medíocre”. Mas, por Deus, por isso mesmo é que é sublime!Em nosso país a vulgaridade é um título, a mediocridade um brasão ; para os que têm a fortuna de não se alarem além de uma esfera comum é que nos fornos do Estado se coze e tosta o apetitoso pão-de-ló, que é depois repartido por eles, para glória de Deus e da pátria. Vai nisto um sentimento de caridade, ou, direi mesmo, um princípio de equidade e de justiça. Por toda a parte cabem as regalias ás inteligências que se aferem por um padrão superior; é bem que os que se não acham neste caso tenham o seu quinhão em qualquer ponto da terra. E dão-lhe grosso e suculento, a bem de se lhes pagar as injúrias recebidas da civilização. 

 

Não se admire, portanto, o leitor se não lhe dou notícias políticas. Política, como eu e o meu leitor entendemos, não há. E devia agora exigir-se de um melro o alcance do olhar da águia e o rasgado de seu vôo? Além de ilógico fora crueldade. Estamos muito bem assim; demais, não precisa o império de capricórnio.  

 

É sob a gerência deste ministério que vai efetuar-se em nossa capital uma festa industrial, a exposição de 1 de dezembro.  

 

Se o leitor acompanhou as discussões do senado este ano, deve lembrar-se que quase no fim da sessão o Sr. senador Penna, que ali ejaculou alguns discursos “notáveis”, entre eles o dos pesos e medidas do Sr. Manoel Felizardo, levantou-se e pediu a opinião do Sr. ministro do fomento acerca da conveniência de representar o Brasil na próxima exposição de Londres.O Sr. ministro, que por uma coincidência, que não passou despercebida, havia previsto os sentimentos do honrado senador, levantou-se e declarou que já havia pensado nisso, e que dentro de quatro dias tinham de aparecer as instruções regulamentares das exposições parciais no Brasil, para delas extrair-se o melhor, e enviar-se á exposição de Londres.Portanto, os dois heróis da exposição são os Srs. Penna e ministro do fomento, a quem, em minha opinião, devem ser conferidas as primeiras medalhas, a não ser que se olhe como prêmio comemorativo a presidência de Mato-Grosso e as ajudas de custo, que, por eleição do sagrado concílio, couberam ao Sr. Herculano Penna. Em todo o caso há uma dívida contraída com o Sr. ministro do fomento.

 

As instruções apareceram um pouco sibilinas e indigestas, como salada mal preparada, mas dignas do ministro e do ministério. E imediatamente as ordens se expediram, com uma presteza cuja raridade não posso deixar de comemorar, e em toda a parte se preparam a esta hora as exposições parciais.  

 

A da corte tem lugar no dia 2 de dezembro, no edifício da escola central. A decoração está a cargo do Sr. Dr. Lagos, que é um dos mais importantes expositores. Disse-me alguém que àquele nosso distinto patrício se entregou uma soma fabulosa. . . (mente) mesquinha, o que é realmente digno de censura, se não atendermos à divisa do ministério, e a que é impossível fazer uma exposição e ao mesmo tempo mandar uma jovem comissão estudar à Europa os sistemas postais. A exposição é uma coisa bonita; mas há muito moço que ainda não foi a Paris, e é preciso não deixar que esses belos espíritos morram abafados pela nossa atmosfera brasileira. Ora, a economia. . .  

 

A Exposição corresponderá aos esforços dos seus diretores, se a atenção pública não for desviada pela nova obra “Ensino Praxedes”, de que dá notícia a folha oficial. É um novo método de ensino, fundado sobre a filosofia do A B C. Ouço já o meu sôfrego leitor perguntar-me o que é a filosofia do A B C. Eu ainda não li o precioso livro; mas diz-me um boticário, que o folheou entre duas receitas, que essa filosofia cifra-se em demonstrar que não há entre as letras do alfabeto a diferença que geralmente se supõe, e que o A e o G se parecem como duas gotas de água. Talvez o meu leitor não ache muito clara a identidade; mas é aí que está a sutileza do novo método.  

 

Ocorre-me lembrar uma coisa. Este livro deve figurar na exposição de Londres. Ali se reserva uma sala para a exposição de planos, livros e métodos pedagógicos de ensino primário. Vê-se que o novo “Ensino” está correndo para lá como um rio para o mar.  

 

A matéria do ensino é grave e profunda; não se deve perder material algum que possa servir à organização da instrução pública, como ela deve ser feita. Ora, compreendesse bem que o sistema do “Ensino Praxedesvem dar um grande avanço, porque, se pela analogia, ou antes, identidade dos caracteres, chegamos a converter o alfabeto em uma só letra, é evidente que teremos feito mais que todos o que têm estudado e desenvolvido a matéria e, se é dado crismar o novo método, proponho que se desdenhe o título de “Método-vapor”, e que se lhe de o que lhe compete, “Método-elétrico.”

 

A obrigação de comentar leva-me a fazer transições bruscas; por isso passo sem preâmbulo do novo livro a oferta que por parte de alguns amigos e admiradores acaba de ser feita ao Sr. Dr. Pinheiro Guimarães, autor do drama “História de uma moça rica”.  

 

Afirmo que o leitor, se não é beato, está tão convencido como eu da justiça daquela oferta. Ela significa, além disso, um desmentido solene às censuras que, em mal da composição do novo dramaturgo, haviam levantado os que sentem em si à alma daquele herói de Molière, que pecava em silêncio e se acomodava com o céu.  

 

As palmas que acompanhavam a entrega da coroa ao Sr.Dr.Pinheiro Guimarães confirmaram ainda uma vez a boa opinião que nós espíritos desprevenidos, sinceramente amante das letras, tem criado o poeta. Estou certo de que elas valem mais que a alma devota dos censores.

 

Tem outro alcance a coroa do autor da “História de uma moça rica”; é um incentivo à mocidade laboriosa, que, vendo assim aplaudidas e festejadas as composições nacionais, não se deixará ficar no escuro, e virá a cada operário por sua vez enriquecer com um relevo o monumento da arte e da literatura.  

 

A nossa capital tem sido visitada por mais de um mágico, e sem dúvida está ainda fresca a impressão que produziu o distinto Hermann, que fazia coisas com aquelas bentas mãos de pôr a gente a olhar o sinal. No tempo em que Hermann divertia a curiosidade infantil do nosso povo, chegou aqui um colega, que, reconhecendo não poder competir com tão distinto mestre, resolveu esperar melhores dias, e foi exercer a sua arte pelo interior. 

 

Agora apareceu ele, o Sr. Philippe, filho de um mágico célebre de Paris. Trabalha com destreza e habilidade, e faz passar o espectador algumas horas de verdadeira satisfação. Se o meu leitor quiser verificá-lo deve ir ao Ginásio sempre que o Sr. Philippe trabalhar.  

 

Efetua-se hoje à tarde a grande regata de que falei em um dos meus “Comentários” passados, e cujo programa as folhas publicaram ontem.

 

Ao que parece, o divertimento será em regra, e amadores e espectadores terão uma tarde deliciosa a passar. Compreende-se bem que os Ingleses se distraiam das suas graves preocupações para tomar parte ou presenciar uma regata, hoje que o divertidíssimo soco inglês é punido pelas leis da Grã-Bretanha. Vejam se não excita a fibra ver quatro escaleres rasgando com as quilhas cortadoras o seio de um mar calmo e azul, e os remeiros, com o estímulo e o entusiasmo nos olhos, empregando toda a perícia, a ver quem primeiro chega ao termo da carreira, que é a terra da promissão! 

 

Diga-se o que quiser dos Ingleses, mas confesse-se que nesta predileção pela regata e outros divertimentos do mesmo gênero mostram eles que Deus também os dotou da bossa do bom gosto. Honra àqueles graves insulares! 

 

Os moços que hoje tomam parte na regata são pela maior parte, oficiais da nossa jovem marinha, mas entram no divertimento franceses e ingleses que não deviam faltar a ele. A festa é, portanto, completa, e desta vez é deveras uma regata, pois que os escaleres devem correr próximos à praia, para que todos possam ver. 

 

Depois da festa do mar, vem a festa dos cemitérios, a comemoração dos mortos, piedosa romagem que a população faz às pequenas e solitárias necrópoles, onde repousam os restos do irmão, do pai, do consorte, da mãe e do amigo.

 

 É uma peregrinação imponente. Os romeiros vão de luto orar pelos que repousam no último jazigo, e derramar à vista de todos, as lágrimas da saudade e da tristeza. É esta uma das práticas dos povos cristãos que mais impressionam a alma do homem verdadeiramente religioso, embora a vaidade humana macule, como acontece em todas as coisas da vida, a grave e melancólica cerimônia, com as suas suntuosas distinções. 

 

Dizem os que têm visitado a antiga cidade de Constantino que há uma grande diferença entre um cemitério turco e um cemitério cristão. Aquele não inspira o sentimento que se experimenta quando se entra neste. O turco entrelaça a morte à vida, de modo que não se passeia com terror ou melancolia entre duas alas de túmulos. A razão desta diferença parece estar na própria religião. O que quereis que seja a morte para um povo a quem se promete na eternidade, a eternidade dos gozos mais voluptuosos que a imaginação mais viva pode imaginar? Esse povo, que vive no requinte dos prazeres materiais, só entende o que fala aos sentidos, e considera bem aventurados os que morreram que já gozam ou estão perto de gozar os prazeres prometidos pelo profeta.

 

Mas filosoficamente, terão razão eles ou nós, filhos da igreja cristã? Há razão para ambas as partes, e cumpre acatar os sentimentos alheios para que não desrespeitem os nossos.

 

Gil

 

 

 

10 de novembro de 1861.

Vaga senatorial – Agências do correio – Companhia italiana: Norma – Compositores nacionais – Condecorações – Batuta – Associação de caridade – Aventura inglesa – Uma volta de artistas.

 

Vagou uma cadeira no senado. É a que pertenceu ao eleito por Mato-Grosso, João Antonio de Miranda, que acaba de falecer, levando consigo a experiência e o conhecimento do egoísmo de um partido político. Tão gordo posto fez arregalar o olho a mais de um; e eis que todos quanto gozam da inefável ventura de andarem entradetes no outono da vida começam a fazer valer os seus direitos e os seus serviços.

 

 Fala-se de muitos, e chega-se até a indicar todas as probabilidades. A folha oficial, que toma o seu papel a sério, sem reparar que encanta mais “par son plumage que par son ramage”, não se arreceou de comprometer no futuro o queijo do experiente, e abriu o largo bico para dizer que entre muitos candidatos um havia que merecia exclusivamente os sufrágios dos eleitores. 

 

Deve supor-se que é esse o escolhido do partido do governo, que é sempre o legítimo partido. Um outro candidato, ministro como o que foi apresentado por “ Maître Corbeau”, não fará concorrência, porquanto, depois de ter naufragado em dois diques, no do Maranhão e no Rio de Janeiro, não quer arriscar-se a fazer uma figura triste neste país, que é o da lindas figuras. Além destes dois, havia um que, se o governo quisesse, podia fazê-lo triunfar, o Sr. Sergio de Macedo, homem que, afora a missão diplomática, o cargo de ministro e o exercício de deputado, tem dado conta da mão saindo-se brilhantemente de toda a empresa que comete. 

 

Tais e outros são os ovos que estão incubando, agasalhados pelas asas protetoras daquela remota e passiva província de Mato-Grosso; estão sim, mas a ansiedade da surpresa não se dará no fim do termo legal da incubação; já se conhece o ovo que há de gerar, e a mim até me parecer ver já o pinto no poleiro. A tal ponto chega à ciência política! 

 

É tão bom ter uma cadeira no senado! A gente faz o seu testamento, e ocupa o resto do tempo em precauções higiênicas, a bem de dilatar a vida e gozar por mais tempo das honrarias inerentes ao posto de príncipe do império. Alguns não observam tão salutar  preceito, e esfalfam-se em orações políticas contra os abusos do poder; por isso vão mais depressa à sepultura, onde ninguém é senador nem tem honrarias de príncipe.

 

 Com a questão da vaga senatorial veio naturalmente a questão da presidência da província, que há de ser a presidência da eleição. Estava nomeado antes da vaga o Sr. Conselheiro Penna; mas S. Excia., que é exímio em ordenar um expediente e em fazer o seu discursozinho sobre questões de ordem, não se abalançará a presidir uma eleição em província que não conhece, e tão longe do governo central.

 

 Trata-se, portanto, segundo ouvi dizer a mais de um, de substituir o nomeado, o que eu acho que é uma coisa muito justa. Pois falta com que distrair os tédios do Sr. Conselheiro Penna no intervalo da sessão legislativa? Não haverá outro ponto do império onde S. Excia. tomar ares? Por força que há de haver. 

 

Tais são as notícias importantes do mundo político que chegaram ao meu conhecimento. Quanto ao Sr. Ministro da agricultura, que é o meu predileto, está fazendo “ amende honorable” de um erro administrativo: restabelece as agências postais do interior, que um dia de sestro econômico lembrou-se de suprimir. Deus o conserve em tão boas disposições!

 

 Apesar da importância dos fatos que muito singela e rapidamente acabo de referir, o que mais deu que falar nestes últimos dias foi a companhia italiana, que aqui está de passagem para Buenos Aires.

 

Falou-se muito antecipadamente na primeira-dama, a Sra. Parodi, que trazia consigo um diploma de reputação européia. Tinha ela de cantar a Norma diante de um público que ainda conservava as impressões de Mme. Lagrange. Por isso todo mundo diletante se agitou, e na noite da representação da Norma lá estavam os antigos entusiastas do canto italiano a esperar pela novidade.

 

A Sra. Parodi confirmou o que dela se tinha dito: tem muito talento e profundos conhecimentos da arte a que se dedicou; é ao mesmo tempo uma eminente cantora e uma trágica eminente. O seu gesto é nobre, os seus movimentos largos e desembaraçados, as suas posições belas, como as das estátuas antigas. Aquilo é que era a sacerdotisa gaulesa. Depois Lagrange ninguém viu melhor. Quando experimentava um sentimento, exprimia-o com a voz, com o gesto, com a fisionomia, sem procurar agradar aos basbaques com os recursos das mediocridades. Ah! É que possui a flama sagrada e consumiu o tempo em uma escola européia, que eu peço licença para considerar melhor que nossas, se me é dado falar dos ausentes. 

 

O tenor Mazzis conhece a arte e canta bem; acrescentai a isto uma bela figura, e compreendereis, leitor, que Norma se apaixonasse por Pelion.

 

Bela e fresca é a voz do baixo Rossi, que foi aplaudido com justiça, e que muito mais o deve ser no Ernani, que sobe hoje à cena.

 

 Coube o papel de Adalgiza a uma moça, quase diria menina, tanto o seu ar ingênuo e tímido me pareceu aquele da criatura que passa a infância à adolescência. A sua voz, fresca e melodiosa, corresponde perfeitamente ao seu todo virginal; começa agora, mas tem condições para ocupar uma bela posição no teatro.

 

 Tal é a companhia que se destina a Buenos Aires. Só tenho palavras de inveja para os nossos vizinhos, que bem podiam ceder-nos a sua companhia por alguns meses.

 

 Assim não há de acontecer, entretanto; e, ao que ouço, a “voluptuosa coqueta del Plata” tem em breve de ouvir  e ver esses artistas, a quem os dilettanti bonaerenses animarão e pagarão com entusiásticos aplausos. 

 

O período é musical; três companhias de canto, a italiana, a francesa e a nacional alternam as suas representações no mesmo teatro. Os compositores nacionais aparecem. Acha-se nesta corte, vindo de São Paulo, o Sr. Elias Álvares Lobo, autor da “Noite de São João”; retirado à sua província natal, o Sr. Álvares Lobo escreveu uma nova ópera, cujo livreto é devido à pena de um dos nossos jovens escritores dramáticos; o Sr. Gurjão está no Pará, e deve voltar brevemente, para fazer cantar uma das quatro óperas, compostas na Itália, terra da música e dos mestres; um jovem professor, o Sr. J. Teodoro de Aguiar, está a concluir uma ópera, cujo livreto tem por assunto um episódio da nossa história indígena, coisa que para alguns espíritos rabugentos é enormemente ridícula. Não sou dessas suscetibilidades que fazem caretas ao ver um indígena em cena; não quero saber a que nação e a que civilização pertencem os personagens; exijo simplesmente que eles sejam verdadeiros, porque invariavelmente hão de ser belos; “ rien n’est beau que le vrai, disse Boileau, que, se me concedem, era uma pessoa de muito critério e siso e pensava nestas coisas um pouco melhor que os censuristas.

 

Por último, está a vir da Europa o Sr. Henrique Alves de Mesquita, talento de uma grande esfera, que mais se ampliou e fortaleceu com a aquisição de sérios estudos, condição essencial do bom compositor, sem a qual se fica em risco de não passar da antecâmara da glória, que esquiva e exigente como ninguém. 

 

O Sr. Mesquita já ligou o seu nome à nossa história musical, compondo algumas daquelas peças em que José Maurício se mostrou mestre. As suas missas trazem o cunho da verdadeira música religiosa. Como compositor de outro gênero, todos conhecem até que ponto chega a sua caprichosa imaginação e a sua instrução musical. Será o digno chefe de tão distinta plêiade. 

 

Creio que podemos dizer: - temos música. E mais – temos animação para os principiantes. Não acaba o chefe do Estado de ornar o peito do Sr. A. C. Gomes, para quem lhe foi pedida pela Academia das Belas-Artes uma condecoração? Este ato, olhado como estímulo, deve garantir os operários da idéia de que serão sempre acolhidos, não só pelas graças do público, como pelos favores dos poderes do Estado. 

 

Devo dizer, falando de condecorações, que um artista de outro ramo, o Sr. Victor Meirelles, autor do belo quadro A primeira missa no Brasil”, obteve da própria inspiração imperial uma condecoração honrosa, em prova de apreço pelo seu trabalho. O favor honorífico caiu para a pintura como para a música. 

 

O autor da “Noite do Castelo” recebeu, finalmente, das mãos de uma senhora, em pleno teatro, por ocasião de se executar a sua ópera, a batuta de ouro com que o brindaram várias representantes do sexo amável. O trabalho artístico é de um perfeito acabado e honra bem as ofertantes

 

Na apoteose dos talentos, bem como no conforto dos que padecem, a mulher exerce sempre a sua alta missão; tanto galardoa como consola. Reúnem-se muitas, associam- se para fazer caridade, e por meio de uma noite de folgares e risos tiram o óbolo, que vão depois depositar no regaço da indigência.

 

É o que deve efetuar-se na noite de 12 deste mês. A Associação de Caridade das Senhoras anuncia para essa noite um concerto vocal e instrumental no salão do Casino Fluminense, cujo produto deve ser empregado no desempenho dos fins da sociedade. Honra e glória para essas almas evangélicas!

 

 Algum filósofo esquisito poderá dizer que um egoísmo que infecciona os homens faz com que estes só abram a bolsa em troco de um prazer, e que o dinheiro que compra o pão dos pobres comprou antes o divertimento dos abastados. Guarde esse as suas moedas de Pompéia, que não tem valor na circulação; se não quer parecer egoísta, não vá lá; a humanidade é assim; as abstrações quiméricas não é que a hão de modificar, responderemos eu e o meu século.

 

Muita gente fala em egoísmo, sem definir propriamente o que ele é. Em minha opinião, que não dou como infalível, ele vale tanto como instinto de conservação, que reside nas organizações animais; é, por assim dizer, o instinto moral, que procura para o espírito o que o instinto animal procura para os sentidos. Vão lá pregar contra o egoísmo aos ingleses; verão como eles os escovam. O egoísmo é a divisa dos súditos de Sua Majestade a Rainha, recentemente Imperatriz das Índias; e tanto a observam que fazem muitas vezes profundas modificações no direito das gentes e no código social das nações, parecendo que os respeitam.  

 

Para prova do que digo, deu-se ultimamente em nosso porto, um fato que é nada menos que uma grave ofensa à soberania nacional. Mal saía a visita da polícia de um vaso brasileiro, apresentou-se um oficial inglês no escaler de sua nação, exigindo a sua introdução a bordo! Está me parecendo este caso igual ao  Charles Georges em Portugal. Nações fracas devem sofrer tudo, dizem as potências de primeira ordem; e, sem atender que, como dizia o conceituado Camões é “franqueza ser leão entre ovelhas”, fazem alarde de sua importância e força material. Benza-os Deus, antes querem um aleijão no moral que uma quebra desse poder que atemoriza os fracos, indignando a consciência. Vamos ver o que fará o nosso governo. Dizem que somos colônia da Inglaterra; não sei se somos, mas é preciso provar que não.  

 

Esta questão de visita marítima tolhe-me a palavra e irrita-me a pena. Creio que não poderei continuar naquele estilo descuidoso e calmo com que comento as coisas. Tenho uma última notícia a dar. Vi nas mãos de um amigo uma carta da Bahia, em que se anuncia a próxima vinda de alguns artistas, muito conhecidos do nosso público, que ali faziam parte da companhia dramática, que, na frase do vice-presidente daquela província em seu relatório, satisfazia perfeitamente as necessidades da civilização baiana.  

 

Declinando-lhes os nomes, faz-lhes a apologia; falo de Gabriela da Cunha e Moutinho de Souza, a criadora de Marco e Margarida Gauthier, e o intérprete feliz do marinheiro da “Probidade”.  

 

Colocada na primeira plana dos nossos artistas (e poucos são), a Sra. Gabriela tem sempre um lugar na capital, em que seus triunfos foram mais celebrados, e onde criou a sua carreira. Além dela e do Sr. Moutinho, diz-se que deve também chegar um novo ator, galã de muita aptidão, e, ao que ouço, o primeiro depois de Furtado Coelho.  

 

Uma não vem talento em flor, que amanhecia cheio de esperança, e que lá fica debaixo do chão, livre dos amargores da vida, mas também sem os louros que a esperavam. Aos que a viram ensaiar aqui os seus primeiros passos sem dúvida se confrangerá o coração quando não lerem entre os nomes de sua família o nome da Ludovina Moutinho.  

 

Gil.

 

 

 

21 DE NOVEMBRO DE 1861.

Cavaco — Caridade — Thereza Parodi — Coros do teatro lírico — A “Resignação”.

 

Ó pachorra ! Tu és a Circe mais feiticeira que conheço contra quem não valem todas as advertências de duas Minervas juntas! Adormeci em teu seio, «amiga velha», como te chamava aquele dom Filinto, que, além desse, tinha outro ponto de contato comigo, na predileção pelas trouxas de ovos; adormeci, digo eu, em teu seio, deixei passar a semana sem vir dizer em letra redonda o que pensava das ocorrências delas.  

 

Não faltou, porém, quem se encarregasse de comentar, como eu, e com um brilho de que não é capaz um escritor novel, ou já por crônica, ou já a propósito de música e de caridade. 

 

E de música foram últimos dias. De tudo o mais, porém, passou estéril a semana. Música nos teatros, música nos concertos, por caridade e por prazer.  

 

Pretende Eugênio Pelletan que a mulher, com o andar dos tempos, há de vir a exercer no mundo um papel político. Sem entrar na investigação filosófica da profecia, a que dá uma tal ou qual razão a existência de certas mulheres da sociedade grega e da sociedade francesa, eu direi que é esse um fato que eu desejava ver realizado, em maior plenitude do que pensa o autor da “Profession de foi”. Eu quisera uma nação, onde a organização política e administrativa parasse nas mãos do sexo amável, onde, desde a chave dos poderes até o último lugar de amanuense, tudo fosse ocupado por essa formosa metade da humanidade. O sistema político seria eletivo. A beleza e o espírito seriam as qualidades requeridas para os altos cargos do Estado, e aos homens competiria exclusivamente o direito de votar.  

 

Que fantasia! Mas, enquanto esperamos a realização dessa linda quimera, à mulher cabem outros papéis, que, se não satisfazem à inspiração de um humorista, podem contentar plenamente o espírito de um filósofo e de um cristão. É, por exemplo, o da mãe de família e o do anjo da caridade; adoçar os infortúnios da indigência e preparar cidadãos para a pátria, que missão!

 

 Cresce o número das associações de caridade, e as principais organizadas são compostas de senhoras, que, no meio da abastança, não se esquecem de que há mães de família, a quem a fortuna não favorece com esses dons que permitem as primeiras os gozos e os cômodos da vida. Essas fazem grossa coleta de donativos, e, sem temer empoeirar o sapato de cetim no lar do pobre, vão repartir aos famintos o pão da subsistência que a indigência lhes negou.

 

A “Associação de Caridade das Senhoras” e a “Congregação de Santa Thereza de Jesus” merecem os mais sinceros encômios pelos fins santos a que se propõem. Se há glória verdadeiramente real e verdadeiramente cristã, é essa.

 

 Ao lado do concerto que deu no Cassino a “Associação das Senhoras”, chamaram a atenção dos “dilettanti”, nestes últimos dias, os espetáculos líricos da companhia italiana, que nos deu Ernani e Favorita.

 

Tive ocasião, nos meus últimos comentários, de falar em Thereza Parodi e seus companheiros. Acabava de ouvir a Norma, e trazia no espírito as impressões recebidas pela execução da famosa partitura de Bellini. A representação de Ernani confirmou-me na primeira opinião, ou mais, deu-me melhor opinião.

 

 Nessa peça Thereza Parodi ostentou os mesmos esplendores de seu talento, que já haviam dado ao papel de sacerdotisa gaulesa o cunho das belas criações, na “cavatina” do primeiro ato, e no “terceto” do terceiro, sobretudo, seus belos dotes de canto e de arte forma empregados de um modo, não a satisfazer, mas entusiasmar a platéia.

 

 Dizem que Thereza Parodi ouviu cantar a Norma à Pasta, de quem recebeu proveitosas lições. O fato é que o mesmo juízo feito pelos críticos eminentes à célebre cantarina podem ser aplicados a Thereza Parodi, guardadas as respectivas distâncias. Nesta, como naquela, a cantora descora diante da trágica; ambas deram à sua arte esse tom dramático que é o caráter da escola clássica, em ambas se encontra esse culto inteligente da plasticidade, de que fala Blaze de Bury a respeito da primeira.  

 

Vendo e ouvindo Thereza Parodi, nós, que tivemos duas brilhantes amostras da grande escola em Stolz e De-Lagrange, apreciamos e dispensamos àquela artista os aplausos com que, honra de um público inteligente, a arte, a grande arte, a verdadeira arte, costuma ser festejada.  

 

Depois de Ernani e de Norma foi anunciada a Favorita. As palmas com que ao terminar a execução da ópera de Donizetti foi Thereza Parodi chamada à cena, foram à manifestação de um público que, sem cuidar de comparações, mostrou apreciar o talento, que, sem pregão nem motim, veio receber no fundo da América uma confirmação ao batismo que recebera na Europa.  

 

Os outros artistas, à parte alguns senões, satisfizeram o público, com especialidade o Sr. Walter.  

 

Dizem que a gente experimenta uma certa mudança moral de sete em sete anos. Consultando a minha idade, vejo que se confirma em mim a crença popular, e que eu entrei ultimamente no período lírico. É isso o que explica hoje a minha preferência pelas representações deste gênero, e que me fazem adepto fervente da música. Como se vê, não me devo em parte lastimar, porque com esta mudança coincidiu o movimento lírico, que se vai observando na atualidade.

 

 Oxalá que, a par do bom que se me dá no velho Provisório, figurassem sempre os coros. Diz Alexandre Dumas que para os ouvidos se fizeram “Guilherme Tell”, os pianos de Erard e as trompas de Sax; evidentemente não se fizeram também os coros do teatro lírico, pelo menos se tratando de ouvidos bem educados. Há ocasiões em que é preciso muito boa vontade para ouvi-los à sangue frio.

 

 Uma novidade dramática aguarda o público: um novo drama do Dr.Achilles Varejão, autor da Época. Como estas coisas não são secretas, e mais ou menos transparecem, pela louvável indiscrição dos que, conhecendo uma peça, não se eximem de antecipar a opinião, fazendo o seu juízo, direi que não tenho ouvido a respeito da “Resignação” senão palavras de louvor e de ardente aplauso. É uma composição escrita nesse tom familiar, que tornam notáveis muita das composições modernas. Deve subir a cena esta semana; nos meus próximos “Comentários” farei detalhada análise.

 

Gil.

 

 

 

 

 25 DE NOVEMBRO DE 1861.

Itália — Por que não foi um embaixador a Koenigsberg? — Uma heresia científica — Dois livros — A companhia italiana — Uma carta.

 

Começo por uma raridade, não uma dessas raridades vulgares de que fala uma personagem de teatro, mas uma raridade vulgarmente rara: — o governo de acordo com a opinião.  

 

Os complacentes e os otimistas hão de rir; não assim os julgadores severos; esses dirão consigo: — é verdade! — A opinião havia acolhido com entusiasmo a unificação da Itália; o governo acaba de reconhecer “com prazer” e sem delongas acintosas o novo reino Italiano. Não é caso de milagre, mas também não é comum.  

 

Afez-se o país por tal modo a ver no governo o seu primeiro contraditor, que não pôde reprimir uma exclamação quando o viu pressuroso concluir o ato diplomático a que aludo. E por que não havia de fazê-lo? perguntará o otimista. Eu sei! Por descuido, por cortesania, por qualquer outro motivo, mas a regra é invariável: o governo sempre contrariou a opinião.

 

 Mas a Itália, ouço eu dizer, assenta hoje a sua existência política nas mesmas bases da nossa: uniu-se para ser a Itália, e escolheu o governo que achou melhor, como o império se unira para ser o império, e como escolheu por uma revolução o governo que achou mais compatível consigo e com os tempos. Quereria o governo brasileiro ser ilógico ou ridículo? Não alcançaria ele a clareza e a firmeza destes princípios?

 

 Tudo isso é verdade, mas não menos verdade, é que este absurdo que por tamanho não parece entrar na cabeça de ninguém, existe na de muita gente. Não há ainda quem espere pela volta do absolutismo a Nápoles? Quem conte, para confusão dos maus, com a destituição de Victor Manoel, e do herói de Marsala?

 

 Podem, é verdade, todas essas coisas acontecer; as vicissitudes humanas concluem muitas vezes pelo absurdo, e pelo aniquilamento dos mais sãos princípios, mas as idéias ficam de pé, e o espírito, abatido, embora, não abdica de si.

 

 Não creio, ninguém pode crer, para honra nossa, que no espírito do governo imperial existisse nunca uma convicção contrária ao ato do reconhecimento. Mas nem por isso se pode contestar, que, por motivos fúteis embora, o governo poderia, como em outras vezes, comprometer a opinião do país com uma nação estrangeira.

 

 E que nação, a Itália! Uma das que a providência das nações destina para ser um guia da raça latina, e conduzi-la através dos séculos ao aperfeiçoamento moral e intelectual de que ela é capaz. Seria lamentável, mas seria possível, e daqui vem que a imprensa e o país louvam todos os atos do governo.

 

 Existirá nesse elogio contra as intenções do país, que o fez de coração, um amargo epigrama? De quem a culpa? Do governo e só do governo. Avezado a remar contra a opinião, este mau timoneiro, se alguma vez volta o batel à feição da corrente dos espíritos, é logo objeto de mil cumprimentos, que lhe devem doer mais do que dobradas chufas.

 

 E ele anda agora em maré de epigramas; alguns bem bons nos lançaram os alemães, a propósito de não haver na coroação do rei Guilherme um embaixador brasileiro, bem que aquele soberano não ficasse nem meio minuto à espera de que o Brasil tomasse parte na função.

 

 Ora, o império foi realmente descortês e não praticou um ato de boa política. Abstraindo da importância da farsa de Koenigsberg, tratava-se de uma potência de primeira ordem, de um soberano amigo, e de uma fonte onde vamos procurar colonos quando precisamos lavrar nossas terras. Se não bastavam as duas primeiras considerações, a última devia de ser digna de reparo do governo. Por que não atendeu a ela?

 

Já ouvi, por suposição, que o governo não quis sem dúvida fazer gastos enormes, a bem de manter convenientemente um embaixador nosso, naquela estrondosa cerimônia. Mas, se é preciso atender a essa tristíssima contingência, se o bom senso do governo imperial chega a descobrir estas dificuldades, porque não o ilumina a providência, detendo-lhe a mão quando, com largueza, envia certas comissões a Europa, e dão ajudas de custo a presidências de províncias, despesas improdutivas, e diametralmente opostas ao programa do gabinete? Essas migalhas fariam um pecúlio para dar que gastar ao nosso embaixador, que demais, não precisava dar saraus estrondosos nem ostentar a suntuosidade com que a França se representou na pessoa do duque de Magenta.

 

 A conclusão forçada de tudo isto é que o governo foi descortês.

 

 Vale-lhe, porém, a inspiração com que se apressou a respeito da Itália, a negação que fez das regras comezinhas de polidez internacional.  

 

Outro tanto pudesse eu opor à negação da ciência em favor do empirismo, que no meio de uma corporação fez o diretor da Academia de Medicina. Ouvi bem, ó vindouros, o diretor de uma Academia de Medicina!” la direction d'une académie va-t-elle se nicher!”   

 

Mas não pasmemos, leitor amigo. Negar a ciência é negar a esposa, com que se contraiu, depois de longo estudo, o consórcio íntimo do espírito e dos princípios. Mas negar a publicidade, negar a discussão, que são a alma do sistema representativo, equivale a negar a liberdade, a negar a própria mãe.

 

 Ora, se o leitor recorrer aos “Anais” da sessão legislativa deste ou do ano passado, há de ler no discurso de um membro da câmara vitalícia a mais extravagante proposta, onde se suprimiam ou restringiam profundamente aquelas duas condições de um sistema livre. Depois disto há que admirar? Lembra-me aquele quimérico de Jules Sandeau, que vendo a causa da queda dos governos nos próprios governos, suprimia-os, para acabar com este inconveniente, bem como suprimia as leis, afim de se não atentar mais contra elas . . . 

 

Felizmente o senso comum faz ouvidos de mercador, e o senador diretor prega debalde aos peixinhos.  

 

Os tipos deste gênero são mais vulgares do que muita gente pensa: — espíritos medíocres, não podendo abraçar a amplidão do espaço em que a civilização os lançou, olham saudosos para os tempos e as coisas que já forma, e caluniam, menos por má vontade que por inépcia, os princípios em nome dos quais se elevaram.  

 

Deixando de parte esses entes passivos que não podem servir de tropeço à marcha das coisas, acho melhor voltarmos à folha nas ocorrências da semana.

 

Representou-se, há tempos, um drama no teatro Ginásio intitulado “Sete de Setembro”, em que o Sr. Dr. Valentim Lopes apareceu no nosso mundo das letras. Esse drama acaba de ser publicado agora em volume. Postos de parte certos pontos de composição, contra os quais se oferecem muito boas razões, mas que não constituem defeitos capitais, contém essa peça beleza de estilo e de arte digna de menção. Mas fora inútil repetir agora e discutir a composição de que a maioria de meus leitores sem dúvida terá velho conhecimento pela exibição cênica.  

 

Também um outro trabalho, que só é novo na forma por que acaba de ser publicado, é o “Pequeno Panorama” do Sr. Dr. Moreira de Azevedo, coleção de pequenos artigos que viram à luz pela primeira vez nas colunas do “Arquivo Municipal”. É um volume precioso, onde a história de muitas cidades e monumentos nossos se acha escrita, sem pretensão, mais com visos de apontamentos que de brilhantes monografias.  

 

Não é o primeiro serviço deste gênero que o Sr. Dr. Moreira de Azevedo presta as letras pátrias. 

 

Nisto cifra-se o movimento da literatura propriamente dita da semana anterior.

 

 Tivemos no sábado a “Norma” pela companhia italiana. Foi noite da despedida. Já se havia dado o “Ernani” por última récita, mas como verdadeiras moças em visita, o público e a companhia quiseram trocar os últimos amplexos no topo da escada. Também foram os mais ardentes e entusiásticos. Posso dizer em minha consciência de comentarista sincero, que foi essa a melhor representação da companhia italiana. Em nenhuma das vezes anteriores a Sra. Parodi se elevou a tanta altura no papel da sacerdotisa gaulesa.  

 

O paquete do Prata levou ontem esses artistas que de passagem nos fizeram gozar algumas noites de verdadeiro e completo prazer. Ouço dizer que devem voltar em maio e passar aqui o inverno: Deus o queira. 

 

Tenho em mão uma carta de um amigo a propósito dos meus penúltimos “comentários”. Em dicção castigada, e com aquela energia dos observadores severos, fez o meu correspondente algumas considerações, que, se devo penetrar no vago da carta, são aplicados à situação em que se acha a nossa arte dramática.  

 

Bem que a magnanimidade do mestre o levasse a dizer que de minhas migalhas se sustenta, declaro aqui, que não migalhas, mas sim escolhida e boa iguaria traz ele à mesa do pobre operário, sem prestígio, sem saber, e talvez sem talento.Agradeço-lhe a carta e as atenções.

 

Termino anunciando a próxima publicação de uma revista semanal – A “Grinalda” – onde cada um pode levar a sua flor e a sua folha a entrelaçar. 

 

Redige-a o Sr. Dr. Constantino Gomes de Souza, cujas aptidões se acham já reconhecidas pelo público, e que deve cumprir o programa a que se propõe.  

 

Gil.

 

 

 

1 de dezembro de 1861.

O que ficou provado a respeito da Itália – Exposição nacional – Morte de um general – A Resignação – “La Dame Blanche” – Comissão para teatro – Ainda o Sr. Senador Jobim.

 

Está acabada a questão do reconhecimento da Itália. Evidenciou-se pela discussão da imprensa que o governo quis atenuar um pouco a coragem com que reconheceu a Itália, trazendo à imprensa considerações que não respiravam a dignidade nem estavam revestidas da lógica que deve assistir aos atos de um governo livre. 

 

Em bom e leal português chama-se a isto – acender uma vela a Deus e outra ao diabo. Ou, se quiser ainda recorrer à filosofia popular – desmanchar com os pés o que se fez com as mãos.

 

 Supunha-se que o gabinete tivesse olhado as coisas políticas da Europa de um ponto de vista justo, e, portanto elevado. Era caluniá-lo; e para não haver dúvida veio ele próprio declarar que faz a sua apreciação do movimento do espírito humano do alto da varanda do palácio imperial.

 

 Qualquer que seja o respeito que merece aquele ponto de vista, palpita-me que o mundo é alguma coisa mais larga, e que as idéias pairam um pouco mais acima dos augustos telhados da monarquia. 

 

Se o governo é dos que, como rei Guilherme I, ainda andam embebidos pela idéia de que Deus se ocupa em fazer coroas para constituir direitos que têm outra fonte real, bem pode renunciar a querer fazer do império uma coisa que preste, e desde já fica habilitado a tirar diploma de imbecilidade ou de especulação.

 

Para isso tem amplo e indisputável direito.

 

 Será mais um episódio da sua biografia, já opulenta destes e quejandos.

 

 A festa industrial que se vai inaugurar amanhã é uma das coisas boas que hão de tirar a triste monotonia da história do gabinete de 2 de março. 

 

Bem que ao governo não caiba o primeiro viço de originalidade desta idéia, que, como se devem lembrar todos, foi iniciada na assembléia provincial, há anos, pelo Sr. Dr. Macedo, todavia o mérito da execução é também um mérito, e eu, nos meus princípios de inteira justiça, não lhe negarei. 

 

A exposição não se abre completa, por falta de tempo; muitos objetos chegados e por chegar esperam ainda um lugar nessa primeira e grande étalage das nossas forças agrícolas, industriais e artísticas.

 

 Do Pará temos ainda as belas madeiras e os magníficos produtos naturais, que fazem daquela província uma das primeiras do império. De Minas há ainda que expor e, como desta, de outras.

 

 O exemplo do governo, ao que parece, será fecundo. Já em Minas Gerais   se havia feito em setembro uma exposição industrial, que apresentou os melhores resultados. O paquete do norte nos trouxe a notícia de que na Bahia se organizara uma sociedade, com os fins de promover a cada ano uma exposição provincial. 

 

Ainda bem que por toda parte vai ganhando terreno esta bela usança, que é uma verdadeira força de progresso e de civilização. 

 

Mercê de Deus, não é capacidade que nos falta; talvez alguma indolência e certamente a mania de preferir o estrangeiro, eis o que até hoje tem servido de obstáculo ao desenvolvimento do nosso gênio industrial. E pode-se dizê-lo, não é uma simples falta, é um pecado ter um país tão opulento e desperdiçar os dons que ele nos oferece, sem nos prepararmos para essa existência pacífica de trabalho que o futuro prepara às nações. 

 

Poupo ao leitor uma dissertação que tinha muito lugar agora sobre essa existência, que é o sonho dourado dos filósofos verdadeiramente amigos da humanidade. 

 

Quero antes voltar folha, e convidar o leitor a acompanhar-me na dor que, à sua classe particularmente, e ao país em geral, acaba de causar a morte de um distinto militar – o general Pereira Pinto.  

 

Há uma coisa de particular e de tocante nos passamentos como este; quando um companheiro de perigos, com quem se correram os azares da fortuna da guerra, deixa o campo para refugiar-se na morte, a dor dos membros dessa classe tem alguma coisa de mais profundo, e infunde maior emoção nos ânimos. É simples: a comunhão do perigo, a partilha dos revezes, ligam mais profundamente os homens, e afluem mais intimamente as almas. 

 

A classe militar perdeu um membro valente; chora-o por isso; e, com ela, o país de quem foi um honrado servidor.

 

................................................................................................................................................................................

 

Esta linha de pontinhos indica que vou passar a assuntos de outro gênero, para os quais não achei uma transição capaz. 

 

A franqueza não será das minhas menores virtudes. 

 

Fui ao Ginásio ver o drama do Dr. Varejão, A Resignação. Bem escrito, contendo lances dramáticos de efeito, esta composição está no caso de merecer o aplauso dos que sinceramente apreciam o desenvolvimento literário do país, naquela especialidade. 

 

Há incerteza e incorreção nos traços das suas personagens, pode-se mesmo dizer que elas pela maior parte estão apenas esboçadas; mas este é o resultado legítimo das proporções acanhadas que o autor deu ao seu drama, e descorado das partes ressente-se do campo estreito em que aprove ao poeta fechar-se. 

 

Aconteceu com a Resignação o contrário do que se deu com a Época. Nesta, a ação está rarefeita, diluída nos cinco atos em que o autor a dividiu; na Resignação, a ação aperta-se, acanha-se, concentra-se. 

 

Mas, se há pontos vulneráveis na peça, há também belezas dignas de apreço. Do autor da Época e da Resignação podemos, portanto, esperar composições, em que, desaparecidos os senões dos seus primeiros ensaios, se reproduzam e porventura centupliquem as qualidades superiores que lhe serviram de valioso diploma ao entrar na literatura dramática. 

 

A companhia francesa deu-nos no Lírico a ópera de Boieldieu La Dame Blanche , com uma execução que excedeu a expectativa dos diletantes. Mme Marti e Mr. Emon foram os primeiros entre todos os artistas. Mme Marti é sempre a artista elegante e gentil cuja presença enche a cena de vida e de animação. Ainda desta vez obteve aplausos merecidos. Mr. Emon conseguiu, por seu talento reconhecido, dar-nos um tipo completo no rendeiro Dikson. Na assinatura que vai começar daquela companhia temos de apreciar mais outras belas partituras do melhor repertório.  

 

Estou no capítulo dos teatros; cabe mencionar aqui a nomeação de uma comissão que o governo acaba de fazer para examinar o contrato com o teatro subvencionado, e dar a sua opinião sobre a celebração de um que encaminhe o teatro a melhoramentos mais reais.

 

 Essa comissão, composta dos Srs. conselheiros José de Alencar e Drs. Macedo e João Cardoso de Menezes e Souza, acham-se com a iniciativa de uma verdadeira organização teatral. Os seus membros dispõem de talento e conhecimentos próprios à bem de completar um trabalho desta ordem.

 

 Fora inútil apontar aqui os títulos do Dr. Macedo, a pena já vigorosa, já faceta, que tanto tem enriquecido o teatro, e o escritor dos mais populares da literatura nacional; os do Sr. Conselheiro José de Alencar, romancista e dramaturgo elegante; e os do Sr. Dr. João Cardoso, poeta mavioso e prosador correto. O teatro é uma coisa séria, carece de muito trabalho e de muita constância. Em uma terra onde tudo está por fazer, não seria teatro, cópia continuada da sociedade, que estaria mais adiantado. A este respeito, não nos iludamos, é preciso trabalhar inteligente e conscientemente.

 

 Aproveitem os esforços já tentados e construa-se um edifício sólido e duradouro.

 

 Antes de pingar o ponto final, permita-me o leitor que eu retifique um erro que me escapou nos comentários últimos. Quando falei de um personagem que preferia a ciência dos selvagens à ciência das academias, o que prova bem que lhe assiste o direito de ser colocado entre os primeiros, disse – diretor da Academia de Medicina – em vez de – diretor da Faculdade.

 

 E, já que falo no diretor, lembra-me esse trecho de um discurso de S.Excia., em que a palavra cloaca era repetida, sem embargo da presença das augustas personagens, em sessão pública e solene. Nem ao menos, o sexo delicado, que ali tinha um régio representante, mereceu de S. Excia. uma consideração de deferência e atenção.

 

 Se o bom do homem é retrógrado em ciência, em cortesia mostra uma simplicidade rústica, digna dos primeiros tempos da humanidade.

 

 E é senador, e é diretor de uma Faculdade!

 

Où la science et la pairie vont-elles se nicher !

 

Gil.

 

 

 

16 DE DEZEMBRO DE 1861.

A lei das condecorações – O sr. Ministro do Império – O fim do decreto – Escola-normal de teatro – Nada de concorrência – Os fins do teatro – Sufrágios pelo rei de Portugal.

 

 

Dizia um filósofo antigo que as leis eram as coroas das cidades.

 

 Para caracterizá-las assim deve supor-se que leis sejam boas e sérias. As leis más ou burlescas não podem ser contadas no número das que tão pitorescamente designa o pensador a que me refiro.

 

 A folha oficial deu a público um decreto que reúne as duas condições: de abusivo e de ridículo; é o decreto que regula a concessão de condecorações. A imprensa impugnou o ato governamental, e à folha oficial foram ter algumas respostas, com que se procurou tornar a coisa séria.

 

 Mas se a coisa era burlesca e má, má e burlesca ficou; as interpretações dos sacerdotes não trouxeram outra convicção ao espírito do vulgo. Devo todavia notar que a má impressão produzida pelo regulamento das condecorações diminuiria se tivesse atendido para o nome do ministro que firmou o decreto. 

 

Benza-o Deus, o Sr. Ministro do Império não é, nunca foi, e muito menos espera ser uma águia. Adeja na sua esfera comum, tem por horizonte a beira dos telhados da sua secretária, e deixa as nuvens e os espaços largos a quem envergar asas de maiores dimensões que as suas.  

 

Isto no gabinete, isto na tribuna; o homem da palavra luta de mediocridade com o homem da pena, e, força é dizer, quando este parece que suplanta aquele, aquele vence a este, para de novo ser vencido.  

 

Por isso há de dar água pela barba a quem descobrir qual dos dois é mais vulgar.  

 

Se tivesse atendido a esta circunstância, o pasmo não teria sido tão grande, porque está escrito que o fruto participa das qualidades da árvore, e o tal decreto devia doer mais ao Sr. Ministro do que se pensa. S. Excia. levou seu tempo a trabalhar naquela obra, não comunicou a ninguém a novidade que ia dar, pelo menos não houve esse zum-zum que precede, as mais das vezes, aos atos do poder, e um belo dia disse consigo: - “Vou causar uma surpresa a estes queridos fluminenses: amanhã pensam ler na folha oficial uma cataplasma árida do expediente dos meus colegas, e eu dou-lhes este acepipe preparado por minhas bentas mãos”. E publicou-se o regulamento.

 

 Ora, cuidar que depois da sua obra a musa da história o receberia nos braços, e ver que ele teve o mais triste dos acolhimentos, o do ridículo, é um transe duro de sofrer, e maior do que se houvesse ligado pouca importância ao resultado das suas lucubrações. 

 

Cada ministro gosta de deixar entre outros trabalhos, um que especifique o seu nome no catálogo dos administradores.  

 

A matéria das condecorações seduziu o Sr. Ministro do Império ; datavam de longe os decretos que a regulavam, o Sr. Ministro quis reunir esses retalhos para fazer o seu manto de glória, e organizou um regulamento geral. 

 

O primeiro artigo desse regulamento espantou a todos, porque exigiu 20 anos de serviços não remunerados, para concessão de uma condecoração, era murar a grande porta das graças, e fazia admirar que o governo com as próprias mãos quebrasse uma das suas boas armas eleitorais.

 

 O art. 9.º restabeleceu os ânimos; muravam a grande porta, é verdade, mas abriam um largo corredor, ou antes, reconheciam e legalizavam essa via de comunicação aberta pelo abuso. 

 

O governo quis ser esperto, mas o público não se deixou cair no laço armado à sua boa fé. 

 

Não vá agora o leitor pensar que me pronuncio assim porque considero a concessão de graças o sumo bem que pode desejar toda a ambição do coração humano!Deus me absolva se peco, mas eu não penso assim. O que, porém, cumpre dizer em honra da verdade, é que o decreto de 7 de dezembro é uma lei manca e burlesca. 

 

Entre os atos de nulo valor do governo ocupa esse um lugar distinto.

 

 Oxalá que ande ele melhor avisado na organização de uma escola normal de teatro, sobre o que está uma comissão encarregada de dar o seu parecer. 

 

Espera-se com ânsia, e pela minha parte, com fé, o resultado do estudo da comissão, porque a matéria apesar de importante não foi até aqui estudada. 

 

Entretanto, antes que tenha aparecido o trabalho oficial, já uma opinião se manifestou nas colunas do “Correio Mercantil”. 

 

Essa opinião sinto dizê-la, devia ser a última lembrada, se merecesse ser lembrada. 

 

A doutrina liberal de concorrência aplicada à espécie prejudica o ponto essencial da questão, e que se tem em vista atingir.

 

Criar no teatro uma escola de arte, de língua e de civilização, não é obra de concorrência, não pode estar sujeita a essa mil eventualidades que têm tornado, entre nós, o teatro uma coisa difícil e a arte uma profissão incerta. 

 

É na ação governamental, nas garantias oferecidas pelo poder, na sua investigação imediata, que existem as probabilidades de uma criação verdadeiramente séria e seriamente verdadeira.

 

 Uma legislação emanada da autoridade, a reunião dos melhores artistas, a escolha dos mestres de ensino, a criação de escolas elementares de ensino, onde se aprenda arte e língua, duas coisas muitas vezes ausentes de nossas cenas, a boa remuneração ao trabalho dos compositores, um júri de julgamento de peças, em boas bases, ficando extinto o conservatório, tudo isto sem descuidar-se na flutuação das receitas, tais são os fundamentos, não de um teatro-escola, mas do teatro, na sua acepção mais abstrata.

 

 Virá o estímulo, os outros aprenderão no primeiro, e arte torna-se um fato, uma coisa real.

 

Mas deixar à luta individual a criação de uma escola nas condições exigidas, equivale a não criar coisa nenhuma. E se alguma coisa se fizer há de ser em demasia lento. 

 

Não, o teatro não é uma indústria, como diz a opinião a que me refiro; não nivelemos assim as idéias e as mercadorias. 

 

O teatro não é um bazar, e se é, que estranhas mercadorias são estas, chamadas Othelo, Athalia, Tartufo, Marion Delorme e Frei Luiz de Souza, e como devem soar mal, nos centros comerciais, os nomes de Shakespeare, Racine, Molière, Victor Hugo e Almeida Garrett. 

 

Não é o teatro uma escola de moral? Não é o palco um púlpito?

 

 Diz Victor Hugo no prefácio da Lucrecia Borgia: “O teatro é uma tribuna, o teatro é um púlpito. O drama, sem sair dos limites imparciais da arte, tem uma missão nacional, uma missão social e uma missão humana. Também o poeta tem cargo de almas. Cumpre que o povo não saia do teatro sem levar consigo alguma moralidade austera e profunda. A arte só, a arte pura, a arte propriamente dita, não exige tudo isso do poeta; mas no teatro não basta preencher as condições da arte.” 

 

Estou certo de que a comissão e o governo não entregarão à concorrência a criação de uma escola normal de teatro. Isto no pressuposto de que a nomeação da comissão não foi uma fantasia do autor do decreto das graças.

 

 Dito isto, passemos a outras coisas. Mas o quê?Depois da minha última revista, nada se deu que mereça uma menção ou um comentário. 

 

O que de mais notável sei, é que se continua a celebrar missas e ofícios fúnebres pelo rei D. Pedro V; na sexta-feira foi o do cônsul de Portugal, hoje é o da sociedade Portuguesa de Beneficência Dezesseis de Setembro, o da Dezoito de Julho, o da Igualdade e Beneficência, e de uma comissão da Prainha

 

Folgo por ver que nestas homenagens prestadas à majestade morta, fala menos o ânimo dos vassalos que o coração dos amigos e admiradores das virtudes daquele ilustre soberano

 

 

 

24 DE DEZEMBRO DE 1861.

Paula Brito – Questão diplomática – Palinódia do ministério -O Sr.Ministro do Império e a “Gazeta da Tarde” – Os homens sérios; reentrada da artista Gabriela – Partida da companhia francesa – o Sr. Macedo Soares – Colégio da Imaculada Conceição.

 

Mais um! Este ano há de ser contado como um obituário ilustre, onde todos, o amigo e o cidadão, podem ver inscritos mais de um nome caro ao coração e ao espírito. 

 

Longa é a lista dos que no espaço desses doze meses que estão a expirar, tem caído ao abraço tremendo daquela leviana, que não distingue os amantes, como diz o poeta. 

 

Agora é um homem que, pelas suas virtudes sociais e políticas, por sua inteligência e amor ao trabalho, havia conseguido a estima geral.

 

 Começou como impressor, como impressor morreu. Nesta modesta posição tinha em roda de si todas as simpatias. 

 

Paula Brito foi um exemplo raro e bom. Tinha fé nas suas crenças políticas, acreditava sinceramente nos resultados da aplicação delas; tolerante, não fazia injustiça aos seus adversários; sincero, nunca transigiu com eles.

 

 Era também amigo, era, sobretudo, amigo. 

 

Amava a mocidade, porque sabia que ela é a esperança da pátria, e, porque a amava estendia-lhe quanto podia a sua proteção. 

 

Em vez de morrer, deixando uma fortuna, que o podia, morreu pobre como vivera graças ao largo emprego que dava às suas rendas e ao sentimento generoso que o levava na divisão do que auferia do seu trabalho.

 

 Nestes tempos de egoísmo e cálculo, deve-se chorar a perda de homens que, como Paula Brito, sobressaem na massa comum dos homens. 

 

........................................................

 

Nas colunas do “Jornal do Comércio” continuam a aparecer os contendores da questão diplomática. “Scoevola”, depois de ter feito sacrifício da mão direita diante de Porsena, anda mostrando que é capaz ainda de outras coisas muito mais asseadas. 

 

O que é divertido é ver perturbados o remanso e a paz da igreja de Elvas. No dize tu, direi eu, declarações de alta importância vieram à tona do debate, o que prova desconfianças, e eis que um novo personagem, com o seu próprio nome, aparece na discussão, a tomar contas aos indiscretos. 

 

Não entra nas condições exíguas deste escrito, nem que entrasse, faria uma mais larga apreciação do debate a que aludo. Menciono apenas como obrigação, e para prevenir o leitor menos perspicaz de que a coisa vai tomar um aspecto mais importante do que até agora. 

 

De política é isso o que oferece algum interesse; no mais, mar morto e calmaria podre. 

 

Não deixarei de consignar mais uma palinódia do ministério, que pode chamar-se bem o ministério das palinódias. Já o Sr. Manuel Felizardo cantou uma na questão dos correios. Suprimiu umas tantas agências, e depois foi restabelecendo-as, já se sabe, com o aplauso dos beneficiados. 

 

Dizia não sei que homem de Estado que é de boa política fazer o mal, porque depois toda a concessão é considerada um bem de valor real. Este preceito não foi mal compreendido pelo atual chefe da nação francesa, que depois de arrecadar todas as liberdades públicas, vai agora concedendo, hoje uma largueza à imprensa, amanhã, outra ao parlamento, e depois outra no sentido da autonomia provincial, e a cada pedaço que larga à nação faminta, esta aceita agradecida e tece louvores ao seu protetor. 

 

Também por cá se dá o mesmo. Preceito tão salutar não podia deixar de ser observado neste país. Semelhante à dos correios, houve ultimamente uma do Sr. Ministro da Justiça, que acaba de restabelecer por um aviso as prisões que competem aos oficiais da guarda nacional. 

 

Como sempre acontece, a reparação foi considerada um benefício extremo; a guarda nacional agradeceu ao ministério o seu ato, e choveram os louvores.

 

 Isto provaria contra o país, se não fosse fato observado em outros países. Por conhecerem da eficácia do sistema, é que os políticos o empregam; lembremo-nos de que, já na Antigüidade, Sócrates sentia prazer em começar a perna depois do arrocho.

 

A este respeito, os nossos ministros são de boa massa.

 

O Sr. Ministro do Império, esse, depois do longo e laborioso trabalho da parturição moral, relativamente ao regulamento das condecorações, ficou abatido; a crise foi tremenda; as conseqüências não podiam ser menos.Acha-se em convalescença; o pequeno está bom. 

 

 A propósito, lembro-me de uma gazeta que se publica nesta corte, ao bater das trindades, e que teve a bondade de ocupar-se de passagem com a minha humildade pessoa foi a propósito da apreciação dos meus últimos Comentários acerca do Sr. Ministro do Império. 

 

Acha ela que o Sr. Ministro do Império, longe de ser vulgar na tribuna e no gabinete, é uma figura eminentíssima tanto neste como naquela ; acredite quem quiser na sinceridade da gazeta de lusco-fusco, eu não; sei bem que ela..ia escrevendo um verbo que ainda não adquiriu direito de cidade ; direi por outro modo : sei que ela faz a corte ao Sr. ministro. Está no seu direito; mas agora, querer encaracolar os cabelos de S. Excia. à minha custa, isto é que é um pouco duro.

 

Passemos leitor, ao teatro.  

 

O Ginásio representou domingo um drama do repertório português, Os homens sérios, de Ernesto Biester, para reentrada da Sra. Gabriela da Cunha.

 

A reentrada de uma artista como a Sra. Gabriela não é um fato comum e sem valor; ocorre-me, portanto, o dever de mencioná-lo nesta revista. 

 

O drama de Ernesto Biester é para mim uma composição de bom quilate. Bem travado e bem deduzido, interessa, comove, oferece lances bem preparados e cenas traçadas por mão hábil. Dos dramas que conheço deste autor é este o que se me afigura mais completo. 

 

Desapareceram nos Homens sérios os defeitos que eu sempre achei no Rafael. Há na peça de que trato mais movimento que nesta última, e menos expansão da fibra lírica, que tornava o Rafael uma elegia, bem escrita é verdade, mas uma elegia, que não pode ser um drama. 

 

Não menos pelo escritor se recomendam Os homens sérios; o estilo brilhante e conciso, o diálogo travado sem esforço, o epigrama fino, a frase sentimental, a expressão sentenciosa, cada coisa no seu lugar tudo a propósito, tais e outras belezas são atestadas que Ernesto Biester dá de seu talento, e que não podem ser recusados por falta de reconhecimento legal.

 

 O papel de Amélia, a protagonista, é um belo, mas difícil papel: a Sra. Gabriela deu-lhe esse tom dramático que caracteriza as suas melhores criações.

 

Os que confiavam no seu talento (e não há duas opiniões a respeito) não se admiraram; aplaudiram e sabiam que haviam de aplaudir.

 

 Não esqueceu o menor toque exigido pelo original do poeta; no 2.º e 4.º atos, principalmente, esteve brilhante. 

 

Um poeta dizia que eram flores que a artista deitava à sua antiga platéia. Flores por flores, também o público as teve, e muitas para pagar as que lhe deu. 

 

Se eu fizesse crítica de teatros, entraria em apreciação mais detida do desempenho. Mas não é assim. Só me cabe apontar muito de leve os fatos. O Sr. Joaquim Augusto acompanhou bem a Sra. Gabriela, no papel de Luiz Travassos, marido brutal no interior, e delicado e solícito em público. Estas duas figuras foram as principais. No papel da condessa a Sra. M. Fernanda fez progressos. 

 

Devia responder agora aos dois artigos que, a respeito do Teatro, a concorrência e o governo, publicaram no Correio Mercantil o Sr. Macedo Soares é o verdadeiro nome das iniciais M. . S. , com que saiu o primeiro artigo. 

 

Permitirá o meu ilustrado e talentoso contendor que eu fuja ao debate; por convicção de erro, não; por medo, fora possível, se eu atendesse só a minha inferioridade pessoal, e não à consideração de que estou no terreno da verdade. 

 

Mas a que chegaremos nós? O Sr. Macedo Soares, nos seus dois últimos artigos, não pôde, apesar do seu talento e da sua ilustração, demonstrar que o teatro não escapa à lei econômica, que rege as corporações industriais; eu continuo convencido do contrário. E pelas condições deste escrito não me é dado estabelecer uma discussão sobre a matéria; com as minhas espaçadas aparições o debate seria fastidioso. 

 

Tenho uma observação a fazer: quando eu disse que a opinião do Sr. Macedo Soares devia ser a última lembrada, se merecesse ser lembrada, não quis de modo algum exprimir um desdém, que tomaria as proporções do ridículo, partindo de mim para com o Sr. Macedo Soares.

 

 Termino mencionando os belos resultados obtidos no colégio da Imaculada Conceição, do sexo feminino, em Botafogo. As meninas mostraram, perante o numeroso concurso que assistiu aos exames, um grande adiantamento mesmo raro, entre nós.

 

Folgo sempre de mencionar destas conquistas pacíficas da inteligência; são elas, hoje, os únicos proveitos para o presente e para futuro. 

 

Fazer mães de família é encargo difícil; por isso também, quando há sucesso, compensam-se os espíritos.

 

 

 

29 DE DEZEMBRO DE 1861.

Créditos extraordinários – Scoevola – O Sr. Penna em missão – Cinna – O ano novo.

 

Houve ontem muito quem se admirasse ao ler, na folha oficial, o decreto abrindo um crédito suplementar de setecentos e tantos contos ao Ministério da Fazenda.  

 

Isso prova que a boa fé patriarcal ainda conta neste mundo, raros e preciosos exemplos. 

 

Admirar-se de que, façam favor? É coisa de admirar que o governo brasileiro abra créditos extraordinários?

 

Deu-se, é verdade, um fato. Fould, o ministro das finanças de Luiz Napoleão, acabava de condenar esse sistema de créditos suplementares, achando neles a origem da crise por que passa atualmente a França. 

 

Este fato fez com que o imperador Napoleão declinasse de si a prerrogativa que lhe havia concedido o ato de 1851.  

 

A imprensa fluminense, apreciando essas coisas, estranhou com razão que um país constitucional, como o nosso, andasse inteiramente ao avesso do que se acabava de praticar em um país onde a liberdade não existe. 

 

O tom moderno da apreciando da imprensa não pôde disfarçar o contraste que resultava do paralelo.  

 

O governo devia sentir-se tocado, pelo acúleo da consciência, e ver que, de fato, a situação desgraçada a que chegamos procedia também das despesas inúteis a que havia ocorrido com os créditos suplementares. 

 

Se a causa da doença era a mesma, idêntico devia ser o remédio.

 

 Contava-se, portanto, que o governo ia estudar mais profundamente a situação e as necessidades, e que não apelaria para os créditos suplementares, tão de fresco condenados, por um governo que nada tem de simpático ás constituições, e que procedeu como não procedem aos governos constitucionais.  

 

Contava-se mal. E a prova é que, ou por convicção da necessidade do crédito ou por pirraça (expressão novissimamente introduzida no vocabulário político pelo Sr.Sergio), apareceu ontem, na folha oficial, um decreto abrindo um crédito extraordinário de setecentos contos.  

 

Quereria o governo com o seu ato contrariar o memorial Fould, fazendo crer que nos créditos suplementares é que está o ideal financeiro, e que só neles repousam a paz pública e a felicidade nacional? 

 

Aqui hão de me perdoar. De um ato do nosso governo só a China poderá tirar lição. Não é desprezo pelo que é nosso não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens cabe-nos perfeitamente. No que diz respeito à política, nada temos a invejar ao reino de Liliput.  

 

Scoevola, que é hoje o compadre indiscreto, anda fazendo revelações dignas de toda a consideração do país. 

 

É preciso notar que este valente romano mora modestamente nos “A pedidos” já sem aquela gala do entrelinhado, que lhe dava ares de filho direto do Olimpo

 

Com esta aparência continua ele a protestar que as suas opiniões não partem de origem oficial.  

 

A revelação de ontem é de peso. 

 

Trata-se de uma missão diplomática, confiada em segredo, entre outras incumbências, ao Sr. conselheiro Penna, que partiu para Mato-Grosso, província que vai presidir. 

 

A missão é conversar com o presidente Lopez, e também tocar em Montevidéu, Buenos Aires e Rosário, para refrescar e ver terra.

 

O Scoevola pergunta se é verdade isso. A filiação íntima que o herói romano tem com os páter-famílias dá o direito de responder afirmativamente.  

 

Aqui temos, portanto, o Sr. Conselheiro Penna estreado na diplomacia, bossa que até aqui não se lhe havia descoberto, e que o governo, que é capaz de descobrir palpitações em um defunto, acaba de apresentar aos olhos do país.

 

Há certas fortunas políticas de nossa terra que não têm explicação. A do Sr. Conselheiro Penna é uma delas. 

 

S. Excia. pertence a parte medíocre do senado, onde tem mostrado que é um dos poucos capazes de desbancar o Sr. Ministro do Império, e tirar-lhe as honras de vulgaridade, a que aliás tem um título incontestável, e incontestado, exceção feita do Correio da Tarde e da consciência de S. Excia.

 

Homem de minúcias e observações limitadas sobre um ou outro ponto ínfimo, S. Ex. estará tão bem em uma secretaria quanto se acha mal na grave curul de pai de pátria.  

 

No senado, sempre esteve alistado na milícia que tem por ofício esmerilhar a conveniência da expressão, o cabimento da vírgula, a necessidade do período. As naturalizações de estrangeiros, a criação de paróquias, a concessão de loterias, eram o seu forte. A apreciação moral das leis, o exame filosófico dos atos do parlamento, a avaliação política dos atos do governo, nada disso existiu nunca para S. Excia.  

 

Entretanto, a fada política do Sr. Penna tem sido constante em protegê-lo , e como que vive da mediocridade do afilhado. 

 

Conta Hoffmann de um anão que, protegido por uma fada que se compadecera dele, elevou-se às mais altas posições do Estado. 

 

Cinabre, era seu nome, recebeu de sua madrinha a faculdade de fazer passar as suas inconveniências e defeitos físicos e morais para os outros, recebendo dos outros, todas as boas qualidades, já do corpo, já do espírito. Graças a esta troca obtinha tudo e não havia concorrência com ele. 

 

Não creio que a fortuna do presidente de Mato Grosso provenha deste milagre; mas, a julgar pelas aparências, faz crer que é assim. 

 

Seja como seja, as palavras de Scoevola merecem toda a confiança, e é certo que temos um diplomata de mais. 

 

Este incidente da conversa com o presidente Lopez tira-me o prazer de ocupar-me um pouco com o Scoevola, a respeito do interesse que S. S. está tomando pela sorte das repúblicas vizinhas, tornando-se até procurador das Altezas em disponibilidade. 

 

Outros tratarão melhor do que eu. 

 

Passemos a outra coisa. 

 

Representou-se quinta-feira, no teatro de São Pedro, a tragédia Cinna, de Corneille. 

 

A tradução é do Sr. Dr. Antonio José de Araújo. Pareceu-me, tanto quanto pude ouvir na primeira representação, um trabalho cuidado e feliz. E, bem que o emprego de versos agudos traga algumas vezes a desarmonia e o enfraquecimento à poesia, há trechos de um completo acabado, já na harmonia poética, já na fidelidade da tradução.

 

 O Sr. João Caetano, no desempenho do papel de Augusto, deu mostra dos melhores dias do seu talento. O seu gesto foi sóbrio e adequado, a sua declamação justa e grave. 

 

Esta justeza da declamação não teve a Sra. Ludovina no papel de Emília. Se acompanhasse com a declamação o seu gesto, sempre nobre e acadêmico, teria satisfeito às exigências do papel.

 

Os outros papéis couberam a diversos artistas; ao sair do teatro, depois da representação, trouxe um pesar na alma: lamentei que Corneille não se tivesse conservado a advogar na sua província, sem se lembrar de escrever tragédias. 

 

O porquê, direi depois. 

 

No mesmo teatro representa-se hoje um drama novo de autor nacional, intitulado Os grandes da época ou A febre eleitoral. 

 

Devo despedir-me dos leitores até para o ano. O de 1861 está a retirar-se, e o de 1862 bate à porta.               

 

Como todo ano novo, este antolha-se rico de esperanças, com uma cornucópia inesgotável de felicidades.  

 

Como todo o ano velho, o de 1861 desaparece coberto de maldições. 

 

Poupo a humanidade umas apreciações satíricas que vinham muitas a propósito nesta ocasião.  

 

Quero antes acompanhar os desejos gerais, e crer que o ano novo há de ser melhor que o de 1861, e a fé que acharei razão para dizê-lo. 

 

Em sinal de regozijo pela chegada do ano novo, aconselho aos pais, aos maridos, e. . . aos namorados, um passeio pela rua do Ouvidor, onde encontrarão nos mostradores dos armazéns com que presentear as respectivas metades de suas almas.  

 

Não incorram naquele crime, crime sim, do avarento, de que reza este epitáfio:

 

Ci-gist, sous ce marbre blanc

Le plus avare homme de Rennes

Que trépassa le jour de l’an

De peur de donner des étrennes.      

 

Comprar por um presente, neste dia especial, o silêncio dos satirizadores deste mundo, creia-me, ó pais de família, é a mais barata das permutas deste mundo.  

 

Entretanto, a uns e a outros, presenteados e presenteadores, desejo de coração felicíssimas estréias e vida, para nos vermos no fim do que vai entrar, eu aqui, a comentar a semana, e vós, leitores, a dar-me um pouco da vossa atenção.

 

 

 

7 DE JANEIRO DE 1862.

O que é o público — Guerra da Inglaterra e Estados Unidos — O publicista dos comunicados — A pedra fundamental e o “Correio da Tarde” — O Sr. Candido Borges.

 

Bem se podia comparar o público àquela serpente — deus dos antigos mexicanos — que, depois de devorar um alentado mamífero, prostra-se até que a ação digestiva lhe tenha esvaziado o estômago; então o flagelo das matas corre em busca de novo repasto, emborca novo animal pela garganta abaixo e cai em nova e profunda modorra de digestão.  

 

Esquisita que pareça a comparação, o público é assim. Precisa de uma novidade e de uma grande novidade; quando lhe aparece alguma, digere-a com placidez e calma, até que desfeita ela, outra lhe fica ao alcance e lhe satisfaz a necessidade imperiosa.  

 

Como o réptil monstro de que falei, o público não se contenta com os manjares simples e as quantidades exíguas; é-lhe preciso bom e farto mantimento. Nada de notável havia ocorrido ultimamente que satisfizesse esta boa coletiva que tudo devora. Os comunicantes do Jornal do Comércio é que faziam as despesas da curiosidade pública; mas facilmente se compreende quanto isso era mesquinho para ocorrer às necessidades daquele estômago voraz.  

 

O paquete trouxe com que dar que fazer ao espírito público: a notícia de uma guerra iminente, entre duas grandes potências, caiu como uma bomba no meio das nossas inocentes e ligeiras preocupações.

 

Era uma notícia cheia, como se quer: uma guerra homérica que fará acordar os tritões adormecidos nas suas cavernas seculares, desde os últimos poetas das Arcádias. Nem mais nem menos. Dois rivais em face; dois dragões marinhos, que, depois de haverem refeito as forças, cada um na sua região, se encontram afinal, no meio do oceano, para uma luta de morte. Há assunto para inspirar as liras dos Homeros

 

Compreende-se bem que, com uma nova destas, o público deixaria de parte os ligeiros entremets que a nossa política lhe oferecia. Haverá guerra? Não haverá guerra? Eis a preocupação geral; as conseqüências da luta, a gravidade dos fatos, o exame do direito, tudo isso dá que fazer ao espírito público.  

 

Parece que os arautos políticos da parte não oficial do Jornal do Comércio compreenderam bem a situação, porque, desde então, nenhum mais apareceu no posto do costume.  

 

Um dia antes Scoevola havia começado uma série de artigos sobre o casamento da princesa imperial, prometendo discorrer para diante, acerca da conveniência de diversos partidos de casamento, que possam oferecer à herdeira da coroa brasileira. Até agora, nada. 

 

Pois é pena! Estava divertido com os seus protestos de queimar a mão, e com as mesuras repetidas que fazia diante do augusto assunto de que tratava. A mim, se me afigurou ver o cabeçalho de um Manual de civilidade cortesã.  

 

Valha-os Deus! Nisto primam eles, e a fé que não é mérito pequeno. Já não é pouco saber um homem como se há de haver nestas contingências e cortesias obrigadas. Pelo menos não se corre o risco daquele fidalgo da sociedade beata de D. João V, de que fala um romance biográfico, o qual perdera muito conceito dos seus, por ter dado a toalha, em vez das galhetas, ao oficiante a quem servia de acólito. 

 

Esperemos, entretanto, pelo final do discurso de Scoevola, que, como o de Tarquínio, na comédia portuguesa, - Roma exige e tem de ser litografado. 

 

Efetuou-se no dia 1.º o lançamento da pedra fundamental no baseamento da estátua do primeiro imperador. O Rocio nesse dia esteve de gala. A cerimônia correu como estava no programa. 

 

As folhas desse dia tinham feito uma apreciação retrospectiva dos acontecimentos políticos do ano, cujas conclusões eram muito desfavoráveis ao partido político que mantém, há alguns anos, uma ordem de coisas contrária à essência do sistema que nos rege. 

 

Não convinha que esse juízo rude, mas sincero, fosse para a caixa de cedro do pedestal, sem um conveniente tempero. Encarregou-se o Correio da Tarde da obra.

 

Apareceu como nota festiva no meio do coro lúgubre da imprensa. Como as vítimas indianas, queria ser inhumado radiante de plumas e miçangas. Estava realmente vistoso. Nada esqueceu; biografou os ministros, fez rápida estatística do que há hoje de mais notável, sem esquecer os principais advogados do foro. 

 

O Correio da Tarde embalou-se na idéia de que há de ser aquela arca santa do arcediago de Notre-Dame, capaz de revelar, depois de um cataclisma universal, a idéia do mundo velho, à humanidade que sobre as ruínas deste aparecer.  

 

Para o Correio da Tarde tudo neste país vai bem, menos a oposição. Os ministros são feitos por um só molde que se perdeu, sendo de notar que possuem as mesmas virtudes que naturalmente o Correio da Tarde há de encontrar-nos que hão de vir. 

 

É um paladar como há poucos. A posteridade o apreciará.  

 

Cai-me agora debaixo dos olhos o expediente do ministério do Império, publicado ontem na folha oficial.  

 

Vejo ali que o respectivo ministro oficia ao seu colega da Fazenda, declarando que o conselheiro Candido Borges Monteiro, jubilado em uma das cadeiras da faculdade de medicina desta cidade, tem direito ao ordenado por inteiro, por ter mais de 25 anos de serviço efetivo. 

 

Parece estranho isto. A que vem esta declaração? Deve-se supor que se pôs dúvida em fazer efetiva a determinação dos respectivos estatutos. Não consta, porém, que o tesouro caísse em equívoco aritmético. 

 

Onde está a chave deste enigma? 

 

Uma declaração mais franca e mais sincera teria obstado a propagação de certos boatos que não fazem a apologia do governo.  

 

Deus ponha longe de meu espírito a idéia de crer em tais coisas, mas o vulgo quer os pontos nos ii. 

 

Não falta quem dê à língua e diga que o lente, a que se refere o ofício do Sr. Ministro do Império, tendo sido aposentado antes da abertura das câmaras, não completou os 25 anos, que só se terminaram depois de fechado o parlamento.  

 

Como não podia acumular os dois lugares, lente e senador, é ainda o boato que fala, julgou-se que se satisfazia o direito e a conveniência antecipando-se a jubilação. 

 

Vê o governo quanto isto tem de grave? Em resumo o lente acumulou.  

 

O boato é um ente invisível e impalpável, que fala como um homem está em toda a parte e em nenhuma, que ninguém vê onde surge, nem onde se esconde, que traz consigo a célebre lanterna dos contos arábicos, a favor da qual se avantaja em poder e prestígio, a tudo o que é prestigioso e poderoso. 

 

Trate o governo de desfazer as suspeitas do boato, restabelecendo a verdade.  

 

 

 

14 DE JANEIRO DE 1862.

DIÓGENES E O CRONISTA – FALTA DE NOTÍCIAS -

PUBLICISTA CASAMENTEIRO – AINDA O SR. CANDIDO BORGES

 

Os atenienses riram-se muito um dia ao ver Diógenes, um doido que vivia em um tonel, saíra com uma lanterna na mão, à cata de um homem. Era para rir. E aquele povo não deu o cavaco, porque via no ato do velho filósofo com visos de desdém pelos contemporâneos.

 

Rir-se-ão os Fluminenses se me virem atravessar (perdoa-me, ó Diógenes!), não as ruas da cidade, mas os dias da semana, com uma lanterna na mão à cata de notícia?

 

Aqui a coisa é inteiramente diversa.

 

Acreditando que o leitor me procura por desfastio, não ousando pensar que inspiro avidez ou curiosidade, acho-me sinceramente vexado quando apareço de alforge vazio, e mais vazia a alma, de com que entreter os ócios do leitor.

 

Creio que faço o meu efeito de um touriste ao voltar do Oriente, sem uma nota,sem um desenho, na sua caderneta de viagem. Tão impossível parece voltar das regiões do berço do sol, sem uma impressão, com o atravessar sete dias sem haver colhido uma notícia para comentar.

 

 Pois a última hipótese não é nenhuma coisa de admitir.

 

Um elegante folhetinista dos nossos, achando-se nas mesmas circunstâncias que eu, encabeçou o seu escrito hebdomadário com esta expressão do gordo Sancho: “Diz-me o que semeaste, dir-te-ei o que colherás”. Aproveito a lembrança , e pergunto se alguma coisa se pode colher deste terreno que se chamou – a semana passada, - onde nada foi semeado?

 

Eu podia , é verdade, entreter o leitor com o imortal Romano da mão queimada, que jurou aos deuses fundir as repúblicas confinantes ao sul do império em uma monarquia e dá-la em presente a um príncipe da família imperial, não esquecendo de casá-lo com a Sra. D. Leopoldina.

 

O publicista casamenteiro não é das coisas que menos riso excitam; pelo contrário, é divertido a mais não poder.

 

Já declarou que não quer ser mordomo do novo rei, nem aspira a ser senador no Estado criado por ele próprio; mas já me parece generosidade de mais, isto de fazer monarquias pelo simples e honestíssimo prazer de ver a realeza aliada à liberdade.

 

Sou um pouco audaz nas minhas investigações , e não poucas vezes tenho visto que a audácia acaba muitas vezes por dar na cabeça, bem que em alguns casos seja uma virtude preciosa.

 

Assim, cheguei a pensar que Scoevola queria tirar desta solicitude pelas augustas princesas e pelos Estados do Prata as vantagens a que visam todos aqueles que só vêem este mundo pelo ponto de vista das armarias heráldicas.

 

A declaração em contrário de Scoevola em seu último escrito avulta tanto como um caracol. Scoevola, pelos modos, pertence a certo partido político que não tem sacrificado muito à sinceridade, e tem como regra de diplomata que a palavra foi dada ao homem para esconder os conceitos e as convicções.

 

Terá ele lido no futuro que a forma monárquica há de vir a estabelecer-se no Rio da Prata, e quererá desde já mostrar-se o propugnador extremoso dessa idéia, que considera a única salvadora daquelas repúblicas? A sua vaidade far-lhe-á ver-se desde já vazado em bronze a figurar no meio de uma praça do novo reino?

 

Este meio de perpetuidade alcança longe e alto demais para supô-lo no espírito de Scoevola.

 

Opto pela primeira impressão.

 

Já o governo fez ver, em comunicado, ao publicista oficioso quanto têm de inconvenientes os seus escritos a respeito das repúblicas do sul. Realmente não me parece patriotismo de boa índole a enunciação de projetos que significam apenas desejos muito individuais, e que não respondem à opinião feita do país.

 

Por não poucas vezes, o império tem encontrado da parte daqueles povos agressões relativamente à política usada com eles, e é verdade inconcussa nos Estados do Sul que o império tem pretensão de conquistá-los;

 

Ora a conquista digna deste século de mútuo respeito entre os povos é aquela que resulta de certas identidades e afinidades tão flagrantes que a divisão se torna uma anomalia e a união uma necessidade de vida. Em tal caso não é conquista, é reparação.

 

Se fosse este o caso do império e das repúblicas do sul, ao tempo caberia o trabalho da realização.

 

Não é de um patriota sincero, como se apregoa aquele, caluniar as intenções de seu país como estrangeiro, deixando entrever, ou antes, falando resolutamente em uma fundação dinástica que a ninguém passou ainda pela cabeça, suponho eu.

 

Por outro lado, não me parece muito bonito tomar por pretexto de invasões pela terra alheia as augustas princesas, cujos cuidados versam ainda entre os estudos próprios de sua educação e as distrações próprias da sua idade.

 

Scoevola tem a boca doce. Pertence a um partido que não cochila quando quer fazer triunfar (sabe o país por que meios) uma conveniência; mas ilude-se quando supõe que a opinião argentina há de fazer sacrifício da sua independência. Os Vera-Cruzes são raros.  

 

O Sr. Candido Borges reclama agora a minha atenção.  

 

Veio o governo em respostas ao dizer do boato, que eu denunciei nos últimos Comentários, e declarou o Diário em completa ignorância dos fatos a que aludi. 

 

Devo observar que apenas fui eco de um boato, e que foi com uma franqueza e uma singeleza talvez proverbiais que transferi para letra redonda o que andava na praça pública, pedindo ao governo uma explicação que restabelecesse a verdade.  

 

O comunicante oficial declarou desconhecer a importância da censura que corria pela boca pequena em detrimento do crédito do governo. Sem dúvida que não é problema social ou político, não se trata da questão da escravidão ou de qualquer outra de máximo alcance; mas presumo que a acusação surda ao governo de uma infração da lei não é lá tão ínfima assim que mereça escárnio e o pouco caso da imprensa. 

 

Dizia-se isto; a imprensa pergunta ao governo se isto é verdade. Creio que é a coisa mais curial do mundo. 

 

Explicou-se o governo, ainda bem. Da explicação se conclui que o boato não era tão inteiramente infundado como se quis fazer supor; houve de fato uma pequena acumulação, ou antes, pretendeu-se realizá-la.

 

O ato do Sr. Ministro do Império não merece louvor, como bem diz o comunicante, porquanto, proporcionar a gratificação aos dois anos e meio que servira o lente além dos vinte e cinco da jubilação com ordenado somente, quando a lei diz que o que se jubilar aos trinta anos é que tem direito à metade da gratificação, seria um sofisma flagrante e de fazer arrepiar ao mais desiludido deste mundo. 

 

Felizmente, segundo diz o comunicante, a decisão do governo, sendo contrária ao Sr. Candido Borges, não fez com que este senhor conselheiro lhe retirasse a sua amizade. 

 

Suponho que há nisto motivo para alegrarem-se os ânimos e expandirem-se os corações. Este fato não perturbou o remanso e a paz da igreja d’Elvas. Ambos conformes, o bispo e o deão, continuarão a dar e a receber o santo hyssope. 

 

Para alguma coisa há de servir a amizade política, e ninguém se lembraria de pensar que, por uma questão de vinténs, o partido conservador sofresse amputação em um de seus membros; e que membro! Eloqüente quando fala, e eloqüente quando não fala!

 

 

 

26 DE JANEIRO DE 1862.

Retificação do título – Encerramento da exposição – Poetas e utopias – Morte do Príncipe Alberto – Morte do duque de Beja – O badalo da igreja – Petição do sacristão – De Ladrão a Barão, drama.

 

Começo retificando: devia dizer comentários da quinzena e não da semana. Com efeito, pela primeira vez em minha vida de cronista deixei passar uma semana sem vir dar aos leitores a minha opinião acerca das ocorrências dela. 

 

Razões que não podem ser devassadas, e que me tocam particularmente, ocasionaram esta falta de dever. Como na peça poética de Elmano, se o canto não vale, valha pelo menos a desculpa.  

 

A sinalefa não deixou de trazer um lado conveniente, e foi que, se, como costumo, tivesse vindo no prazo competente comentar e apreciar a semana que findou, com bem pouco teria de me haver. 

 

A semana passada foi das mais fartas em notícias. Encerrou-se a exposição nacional, mas este fato passou tão despercebido, tão em família, que nada deixava a dizer a respeito. O que havia dizer, nos limites estreitos da crônica, já o disse em outra ocasião. 

 

Caberia aqui exortar o tribunal julgador dos objetos apresentados à bem cumprir o seu dever, tendo principalmente em vista os interesses e o crédito do país? Seria isto antepor uma dúvida, que o conhecimento pessoal de alguns jurados não me consente, e que o crédito da totalidade deles tornaria intempestiva. 

 

Tenho para mim que esta primeira participação séria que o Brasil toma na festa industrial de Londres é de alcance elevado, e suponho que, como eu, estarão todos convictos disso. 

 

Também estou certo que, se tempo houvesse, se faria uma exposição da escolha dos objetos enviados a Londres, de forma a dar a conhecer ao público, e de um modo patente, os serviços do júri. 

 

Infelizmente. Tão apressada foi esta primeira exposição, tão tarde se lembrou o Sr. Penna de propor aquilo que já o Sr. Ministro da Agricultura trazia no interior, que não se podia exigir mais do que foi feito.  

 

Sem dúvida, nas exposições posteriores, das quais uma deve efetuar-se, ao que me parece, antes da universal de Paris em 1865, o governo porá mais cuidado em que nada seja esquecido, para que melhor se alcance o fim destas reuniões anuais de produtos e forças do país.      

 

Uma coisa ficou patente com esta primeira exposição, é que as idéias mudam de natureza com as pessoas e com os tempos. A mesma idéia que agora se realizou, proposta pelo Sr. Dr. Macedo na assembléia provincial, há anos, foi tida por utopia, e granjeou ao digno deputado o nome de poeta. Com o Sr. Penna mudaram as coisas; a utilidade prática da proposta foi reconhecida, e ninguém se lembrou de castigar aquele senador com chascos afrontosos.  

 

Também o que faltava era admitir a hipótese de um consórcio entre poesia e o Sr. Penna, coisas que, na ordem moral, representam aqueles dois pontos que, na ciência humana, são chamados – eixos do mundo.           

 

Ainda bem que a idéia enunciada por um patriota sincero, e só poeta daquela poesia que não pode ser compreendida pelas mediocridades prosaicas que o cercavam, acaba de ser posta em prática de um modo que mostrou bem a sua realidade.

 

Além deste fato, outro se deu, de que me ocuparei mais adiante, e que pertence especialmente à ordem literária.  

 

O paquete da Europa, que aqui chegou à semana passada, trouxe a notícia da morte de dois príncipes: o príncipe Alberto, de Inglaterra e o infante D. João, de Portugal.  

 

Tinham ambos a estima sincera do seu país. O primeiro, na posição difícil em que se achava, e que Edmond Texier não hesita em chamar quase ridícula, soube conquistar essa estima pela iniciativa tomada nos progressos materiais e morais do Reino Unido, e pela solicitude e vigilância com que sempre se houve ao pé da rainha, sua esposa, a bem de amparar o sistema constitucional que faz a primeira força do povo inglês.  

 

Dava arras do seu amor pelo país até este ponto: “Se os povos, diz Edmond Texier, gostam do licor açucarado da lisonja, também os reis não deixam de dá-lo a beber. Uma manhã de inverno, com um frio de doze graus, um capitão que acabava de jogar e perder a capa, foi encontrado em Newski pelo czar Nicolau: — Por que não trazes a tua capa? — Senhor, porque não faz frio nos Estados de Vossa Majestade. — O imperador lisonjeado passou sem insistir. Tinha encontrado um homem que não acreditava no inverno russo. Também o príncipe Alberto respondia com as suas calças brancas à calúnia propagada pelos estrangeiros contra o clima da velha Inglaterra”.  

 

A morte do príncipe consorte foi sentida e chorada com sinceridade. A Inglaterra compreendeu que havia perdido um amigo, e como tal o pranteou.  

 

Não menos sentida foi a morte do duque de Beja. Somente, a nação portuguesa acabava de prantear a morte de dois príncipes, um deles seu chefe político, e a sucessão dos casos tristes, trazendo ao espírito suspeito do povo umas desconfianças infundadas, posto que sinceras, de tal sorte o havia abatido, que a dor foi mais automática que estrepitosa, mais íntima do que pública. 

 

Tais foram os fatos de que mais se ocupou o espírito público durante a semana finda.  

 

Transtornarei a ordem cronológica dos fatos e tomarei agora um que, de fresco, acaba de ser comunicado à curiosidade pública.  

 

Quero falar da portaria do Sr. Presidente da província do Rio de Janeiro a certo vigário, resolvendo umas dúvidas suscitadas por um sino sem badalo. 

 

Na dúvida de quem havia de tanger o sino a recolher, S. Excia. tomou o partido de incumbir isso ao sacristão ou a outro qualquer empregado da igreja.  

 

Para os que não leram o aviso a que aludo, poderá parecer isto invenção minha, com o intuito de criar um novo plano de Hyssope, e assim inspirar as liras cômicas dos Boileaus e dos Dinizes. Protesto contra uma tal suspeita. O fato é real. Parece questão idêntica a que trouxe muito tempo separados o bispo e o deão da igreja d’Elvas, é verdade; mas com isso o que tenho eu, e o que tem a imprensa? 

 

Algum observador aparentado com Demócrito poderá achar razão nestas bernardices administrativas, invocando o princípio dos contrapesos e das compensações, e assim dizer que em país tão grande, territorialmente falando, como este, é bem que a direção das coisas públicas apresente este aspecto de ninharias e ridiculidades, a fim de estabelecer o alto e malo das coisas humanas . . .

 

Deixo aos filósofos a discussão deste dito. 

 

E pondo de parte a apreciação do aviso inserirei aqui a petição que me foi comunicada, e que, segundo me afirmam, foi ou vai ser dirigida pelo sacristão da paróquia ao Sr. Ministro do Império.

 

Vejam os leitores as razões dadas pelo peticionário:

 

Consinta Vossa Excelência

Que a boca de um sacristão,

Com aquela reverência

Devida à alta função

De uma sagrada eminência,

 

Exponha um arrazoado

Contra o aviso recente

Da inteligência emanado

Do mais sério presidente

Que ainda foi nomeado.

 

Senhor, este caso é novo;

Faz dar voltas ao juízo;

Nem há memória entre o povo;

De modo que é este aviso

Menos aviso que um ovo.

 

Presume Sua Excelência

Que, por dar bem ao badalo

No sino da presidência,

Hei de eu agora imitá-lo

Ermo da mesma ciência?

 

E quer, ajudando o fado

Na minha tribulação,

Tornar-me mais onerado

Fazendo de um sacristão

Um sineiro despachado?

 

E hei de eu, deixando o leito,

O leite doce e macio,

A que me acho tão afeito,

Ir apanhar ao ar frio

Uma doença de peito?

 

E se um dia, ainda tonto,

Deixando o fofo colchão,

As horas erradas conto,

E vou bater o aragão,

Já à meio-noite em ponto?

 

Ah! Se ao menos um badalo

Tivesse o citado sino,

Então cantara outro galo!

O fado, menos mofino,

Não me dera tanto  abalo!

 

Por certos meios arteiros,

De maior ou menor fama,

Satisfaria os parceiros;

E sem tirar-me da cama,

Fora o melhor dos sineiros.

 

Uma cordinha bastava,

Presa ao badalo em questão,

E a ponta que lhe ficava

Tê-la-ia em minha mão,

E tudo se conciliava.

 

E um dia, se Deus clemente

Permitisse à freguesia,

À vista do presidente,

Como um pouco de água fria

A sequioso doente;

 

Unido ao prazer geral,

Livre já do antigo abalo,

À entrada triunfal

Iria dar ao badalo

Um repique original.

 

Seria prêmio mofino

Do mais pobre dos bedéis

Ao funcionário ladino

Que no código das leis

Abriu capítulo ao sino!

 

Nem seria a mão da inveja

Que havia de despojá-lo

Da glória que tê-lo almeja,

E que há de enfim proclamá-lo

Sólon de torre de igreja.

 

Mas para isso, Excelência,

Para tal apoteose,

Carecia a presidência

Gastar uma nova dose

De estudo e de paciência.

 

Então, deixando aos vulgares

Os sediços monumentos,

Cortando por novos mares,

Teriam os seus portentos

Novos, melhores altares.

 

Coisa seria imponente,

Capaz de matar a inveja,

Poder contemplar a gente

Em cada sino da igreja

A efígie do presidente.

 

E, se a mente não erra,

Mostraria a presidência,

(Que tanta beleza encerra)

Que, além de Vossa Excelência,

Ainda há mais gente na terra

 

***

 

Passarei agora a coisas sérias.

 

Um novo drama nacional foi levado à cena no teatro Ginásio. O autor, o Sr. Álvares de Araújo, é um estreante, cuja inteligência se dirigiu sempre a outra ordem de aplicação, e que acaba de entrar no teatro aos aplausos dos amigos da arte e da literatura dramática.

 

A crítica com os estreantes deve empregar uma solicitude materna, mostrar-lhe o mau e o bom caminho, ensinar-lhe a evitar os precipícios e a alcançar o alvo a que todas as inteligências se dirigem; isto para com o poeta. Para com o público, serve ela de intérprete da idéia do poeta, defensora mesmo da sua composição, a fim de animá-lo a tomar vôo mais seguro. Deve ser amiga e, segundo diz Chateaubriand, empregar mais o louvor que a censura.       

 

Se este último conceito se dá para a crítica destinada a construir com o poeta o edifício da sua reputação, até poder um dia, desligando-se dele, ir tomar lugar entre os espectadores e pedir-lhe conta das suas lições, é ainda o dever da crônica, cujas atribuições se estreitam na menção das obras, e na manifestação da impressão recebida.

 

Ora, só deixam impressão, mais ou menos viva, aquelas obras, que, encerrando alguma coisa, recomendam-se por não espúrias, senão legítimas filhas do talento.

 

De Ladrão a Barão, repousando sobre uma tese, usada já, qual a de origem criminosa de muita fidalguia empavesada, revela primeiro que tudo a indignação expansiva de uma consciência diante da corrupção social. Antes do poeta mostra-se o homem, antes do talento o caráter.

 

A tese não é nova, disse eu. Assim é. Não é novo no teatro remontar à origem das fortunas e dos pergaminhos para encontrar os meios reprovados das dilapidações forçadas e escandalosas. Mas a insistência dos poetas em tratarem do assunto é tanto mais necessária quanto à sociedade precisa mais e mais dessas correções vivas e constantes.

 

Todavia, escolhendo tal assunto, o Sr.Álvares de Araújo criou-se uma dificuldade. Como haver-se com ela, logo da primeira vez que entrava em terra nova? Mediu o esforço pelo dever do combate e atirou-se ao campo.

 

Venceu a dificuldade? Venceu e não venceu. Saiu-se bem no plano geral da peça, mas nos detalhes a sua mão acusa a inexperiência de primeiro trabalho; as suas figuras, exceto a do protagonista, que acho vigorosa, todas as mais revelam frouxidão e incerteza.

 

A energia máscula de Elvira dá-se mais a conhecer por tradição que por exibição. E, entretanto, que belo pensamento não foi o do poeta, dando à mulher o exemplo do castigo dos maus, e que bela criação, toda ideal embora, não ficaria, com mais algum cuidado, aquela figura imponente de mulher.

 

Gustavo Pereira foi o papel mais cuidado da peça, e era natural que assim fosse. É comum a todos os que estréiam, tendo personificado a sua idéia em uma personagem, concentrar todo o esforço e trabalho nessa figura principal, de modo a empalidecer as outras que vão entrelaçadas na ação.

 

O Sr. Álvares de Araújo estreou bem. Os aplausos que o receberam devem servir-lhe de animação. Se lhe faltam as qualidades próprias da experiência e do tempo, sobram-lhe outras, as principais, as que nascem da intuição, e que são, por assim dizer, o óbulo e a benção que a musa dá ao poeta, para começar a sua romaria.

 

Deu este drama lugar a que aparece um ator que, até aqui, além do papel de escrivão na Torre em concurso, não se havia podido revelar.

 

Falo do Sr. Flávio, a quem coube o papel de André, uma das vítimas do ladrão-barão. Representou de modo a receber merecidos aplausos.

 

O Sr. Joaquim Augusto tem desempenhado com relevo o papel de Gustavo Pereira, hipócrita brutal.

 

O papel de Elvira coube a Sra. Gabriela, cujo elevado e vigoroso talento sabe dar-lhe brilho e realce; no quarto ato, principalmente, tem merecido vivos aplausos.

 

O papel do nobre e sincero Emilio da Veiga deve ao Sr. Amoedo apropriada interpretação.

 

 

 

8 DE FEVEREIRO DE 1862.

Ao redator dos “Ecos Marítimos”

 

Meu caro, — Praz-me acreditar que, nos longos anos da nossa intima e nunca estremecida amizade, tenho-te dado sobejas provas de que não costumo subordinar as minhas opiniões ao interesse ou conveniências, e que, errôneas ou verdadeiras, são-me elas sempre ditadas pela consciência.

 

Sabes que não pertenço ao número desses otimistas que tem sempre nos lábios um elogio e nos bicos da pena uma justificação para todo ato de poder, somente porque é do poder.

 

E, pois, tentando defender o atual ministro da Marinha de acusação que julgaste dever dirigir-lhe, faço-o constrangido, é verdade, por achar-me em divergência com um amigo a quem muito prezo, mas sem temor de que me classifiques entre os turiferarios e amigos interesseiros de que falaste no teu primeiro artigo.

 

Nesta contenda ficaremos colocados em campos opostos, tomaremos mesmo caminhos diversos, mas como ambos temos o mesmo fim, como ambos visamos ao mesmo norte — a elucidação da verdade, — espero que nos encontremos, e então, como agora, nós poderemos apertar as mãos, porque nem tu nem eu teremos de corar.

 

Não tratando por enquanto do teu primeiro artigo, porque nele te limitas a formular capítulos de acusação, que prometes desenvolver mais tarde, ocupar-me-ei com as censuras, que no segundo fazes ao sistema que se está seguindo no fabrico do vapor Amazonas.

 

Pensas que semelhante obra seria mais pronta e economicamente realizada, prorrogando-se as horas de trabalho, mediante abono de gratificações de sesta aos operários?

 

 “Por este modo, dizes tu, lucraria o governo que mais cedo teria à sua disposição o Amazonas; lucrariam os operários que com esse acréscimo de salário proporcionariam às suas famílias maior soma de bem estar; lucrariam os cofres públicos,aumentando suas receitas com o aluguel do dique”.

 

Para admitir estas conclusões, seria mister conceder-te que a produção do trabalho durante as  2 horas da sesta é equivalente ao salário de meio dia, em tais casos abonado como gratificação, o que contesto.

 

O trabalho ordinário começa nos nossos arsenais ao nascer do sol e termina às 4 horas da tarde, apenas com interrupção de ½ hora concedida para o almoço; o extraordinário ou sesta prolonga-se dessa hora ao anoitecer.

 

Assim o sistema que preconizas exige do operário um esforço continuado de 13 horas!

 

E acreditas que um homem possa, no nosso clima, e durante a estação calmosa, trabalhar com a mesma atividade e perfeição por tão dilatado espaço de tempo, exposto aos raios de sol, que os gigantescos refletores de granito formados pelas paredes do dique, tornam ainda mais abrasador?

 

O bom senso te dirá que não.

 

Um ou outro indivíduo, dotado de constituição mais robusta, realizará este supremo esforço no primeiro ou segundo dia, porém, certamente sucumbirá tentando ultrapassar esse limite.

 

Mas me dirá, o meio que indico tem por si a sanção de inveterada prática!

 

Nem tudo o que é velho é bom; e não ignoras que mais de um abuso existe enraizado na nossa administração pelo emperrado espírito de rotina.

 

Vês, portanto, que a adoção do alvitre por ti sugerido, longe de produzir as vantagens que apontas, prejudicaria os cofres públicos, que teriam de pagar pela obra feita quantia superior ao seu merecimento; prejudicaria ao serviço naval dando como pronto um vapor que, pelo mal acabado do seu fabrico, teria mais tarde de voltar à posição de disponibilidade.

 

Isto é intuitivo; e seguramente escapou, porque apenas examinaste a questão por uma face.

 

O dique, como bem dizes, não foi construído para cevar os cofres do Tesouro, porém, para prestar o seu valioso auxílio ao material da nossa armada; conseguintemente, que importa que os navios neles se demorem mais ou menos dias, se por este modo executam-se radicalmente os concertos de que carecem?

 

Precipitação é antípoda de perfeição.

 

Se isto não fora um axioma, citar-te-ia, como exemplo, o vapor Oyapock que, segundo é voz geral, saiu do dique fazendo água.

 

Passemos ao outro ponto.

 

O ministro da Marinha não se intrometeu em atribuições privativas de outrem nem procurou exercer pressão sobre o espírito dos peritos do arsenal, no intuito de arrancar-lhes opinião favorável ao vapor Princesa de Joinville; sua intervenção neste negócio foi estritamente legal e ditada pelos preceitos da prudência e de justiça.

 

A companhia dos paquetes, como é de praxe, requereu que esse navio fosse vistoriado; mas, empregando as restrições mentais em que é vezeira, não falou do casco, porém simplesmente da máquina; e os peritos, que sabem ser aquele o ponto vulnerável, lavraram o seu parecer em termos genéricos declarando que haveria imprudência em arriscar o vapor em uma viagem no oceano.

 

Frustrada a estratégia, voltou à companhia requerendo que se discriminassem os quesitos que tinham servido de base ao juízo da comissão; ao que, como era de seu dever, deferiu o ministro. Eis quanto pela marinha se fez negócio; o mais pertence ao ministério das Obras Públicas.

 

A meu ver, fora melhor ter-se negado à companhia permissão para fazer seguir semelhante vapor aos portos do norte; porém, como foi ela limitada pela proibição de conduzir passageiros, acautelando-se por essa forma a segurança do público, qualquer desastre superveniente apenas alcançará a tripulação e companhias de seguro, que só terão o direito de queixar-se de sua imprudência, visto que perfeitamente conhecem os riscos que vão correr.

 

Não posso, todavia deixar de notar que a companhia, anunciando a saída do Joinville, calasse tão importante circunstância!

 

Dadas estas explicações, consentirás que te faça um pedido.

 

Acredita-me, amigo, abre mão de pequenas polêmicas de que não poderás tirar glória, não malbarates em pouquidades o talento que Deus te concedeu; volta-te para os grandes interesses do país, disseca as profundas chagas que corroem o nosso corpo social, põe a descoberto a podridão desses cancros que, sob o nome de companhias, absorvem o melhor dos nossos recursos; e protesto-te que nesse terreno, não tendo forças para acompanhar-te, pelo menos te aplaudirá o sincero amigo.

 

Machado de Assis.

 

 

 

2 DE MARÇO DE 1862.

Haabás, drama do Sr. R. A. de Oliveira Menezes. – Ensaios literários, do Sr. Ignácio de Azevedo. – Almanaque administrativo, mercantil e industrial, do Maranhão. – O terreno de Mendoza. Drama lírico do major Taunay. – O carnaval.

 

Tenho à vista dois livros oriundos da academia de São Paulo. A sua publicação não data da semana que findou ontem, mas data de poucos dias o conhecimento que tenho deles. Não me foi preciso demorada leitura para avaliá-los; de relance se lhes pôde ver a importância e o alcance, ainda mesmo quando não há fundo de erudição que dê a uma apoucada inteligência foral do juiz.

 

O Sr. Rodrigo Antonio de Oliveira Menezes escreveu um drama em um prólogo e dois atos que intitulou Haabás. É um livro tosco pela forma e brilhante pelo fundo; é uma bela idéia mal afeiçoada e mal enunciada, o que não tira ao livro certo mérito que é forçoso reconhecer!

 

Haabás é um escravo que mata o feitor em um desforço de honra por haver-lhe aquele seduzido a mulher. É perseguido por este motivo. Seu senhor é implacável. Haabás consegue escapar. Entretanto, apanha uma criança, fruto de amor criminoso de sua senhora moça, leva-a consigo fá-la educar, até entregá-la a seus pais vinte anos depois.

 

Tal é, em poucas palavras, a trama de Haabás. O autor fundou o seu drama sobre duas idéias, ou antes, sobre dois fatos: primeiro, a condição precária dos cativos; depois, a generosidade que pôde existir nessas almas, que Herculano diria atadas a cadáveres.

 

O intento foi nobre, e não lhe diminui o alcance moral a rusticidade da forma; mais cuidado e mais conhecimento das regras dramáticas, Haabás seria então uma bela realidade, não passando, como está, de uma generosa intenção.

 

A ação não se acha desenvolvida; a travação das cenas é irregular; estas parecem antes os trechos restantes de uma tradição, acumulados para base de uma obra que não foi escrita, e que a outro caberá desenvolver.

 

Por mim, quisera antes que o autor a desenvolvesse; que importa existir já esta tentativa? Tome o seu pensamento e trate de ampliá-lo; escreva um drama, ou mesmo um romance, sobre a larga base que desaproveitou com aquela frágil e acanhada construção.

 

O que lhe faltaria para isto? Linguagem, não; a de Haabás, se não é de pureza exemplar acusa raras qualidades que a prática desenvolverá.

 

E nessa nova composição apareceria de certo aquela 2.ª cena do 2.° ato, delicioso idílio, escrito com arte e espontânea suavidade. Nem faltariam expressões felizes, como muitas das que ornam as páginas desta tentativa.

 

Não creio que, no que levo dito, me pareça com o empertigado crítico que visitou o autor em sonhos, como ele conta espirituosamente no prólogo.

 

Uma coisa que ele não lhe reconheceu, e que eu julgo dever mencionar, tanto mais quanto se eu o não fizesse, Haabás encarregar-se-ia de fazê-lo, é que possui um belo talento e que poderá com vantagem aplicar-se ao teatro para honra da literatura nacional.

 

***

 

Passo agora aos Ensaios literários do Sr. Ignácio de Azevedo. O Sr. Ignácio de Azevedo é irmão daquele autor dos Boêmios e de Pedro Ivo, cuja perda choramos ainda hoje.

 

É talvez a esta consangüinidade, além da assistência na academia, onde Álvares de Azevedo deixou imitadores, que se deve a cor sombria e fantástica que o autor procurou dar a quase todas as páginas deste livro.

 

O Sr. Ignácio de Azevedo é uma inteligência a formar-se; participa dos defeitos do que se chamou escola azevediana, sem todavia empregar nos seus escritos os toques superiores que o estudo mais tarde lhe há de dar. As almas na eternidade é uma revista de espíritos, uma imprecação minuciosa de alcance secundário.

 

Os contos revelam imaginação, mas estão em alguns pontos descarnados de mais, e se o autor me permite individuar, lembro-lhe, entre outros exemplos, aquela página 98.

 

***

 

Com a imaginação e a inteligência que tem, o Sr. Ignácio de Azevedo deve procurar no estudo e na reflexão as qualidades indispensáveis de escritor, e estou certo que da vontade e do cabedal que possui nascerão obras de mais significação literária que os Ensaios.

 

Não riam as imaginações poéticas e as almas seráficas se passo a falar de um almanaque, e menos me acusem de lisonjear os utilitários. Em geral, um almanaque é um livro importante, mas este de que vou falar tem ainda outro valor; por isso descansem que não me ocuparei com a exatidão e divisão da estatística, nem com outras matérias próprias destas obras.

 

O almanaque administrativo, mercantil e industrial para 1862, do Maranhão, entra agora no seu 5.° ano.

 

Como é natural em obras de utilidade geral, a publicação vai tomando maiores e mais sérias proporções. Fecha-se o deste ano com alguns artigos relativos à lavoura e uma das brasilianas do Sr. Porto-alegre.

 

O primeiro daqueles artigos é uma página bem lançada, escrita com reflexão e proficiência, na qual se demonstra a necessidade de pôr termo à rotina que impede o desenvolvimento da agricultura. Aconselha o escritor aos lavradores que, em bem de tornar a lavoura outra coisa que não é, façam dar a seus filhos uma educação agrícola nas escolas européias. Enunciando este conselho, o escritor passa a examinar a conveniência oferecida por cada um dos países onde se podem ir buscar esses estudos, e decide-se pela escola de Grignon, na França, cujas condições oferecem mais vantagens e melhores esperanças de resultado.

 

Acompanham este artigo diversas transcrições relativas ao mesmo assunto, e por fim a brasiliana, do Sr. Porto-alegre, Destruição das matas. A raridade da edição das Brasilianas, e o grande mérito da composição do nosso épico, tornam mais importante a inserção destes versos no Almanaque do Maranhão. 

 

***

 

Está ainda fresca na memória, pela proximidade do acontecimento, a terrível catástrofe que destruiu a cidade de Mendoza. Entre os que foram salvos do terremoto notam-se Mr. Teisseire e sua filha de quatro anos que se acham nesta capital. Mr. Teisseire era um antigo tenor de Paris que se havia estabelecido naquela cidade. A catástrofe sucedeu quando ele começava a construir uma pequena fortuna.

 

Veio esta menção para anunciar a publicação de um drama lírico fundado sobre o episódio da catástrofe relativo àquelas duas ressurreições e que traz o nome do major Taunay.

 

Esta composição é destinada a favorecer a Mr. Teisseire e sua filha, restos de uma família numerosa que pereceu na destruição de Mendoza.

 

Esse é o seu principal mérito; a obra não é notável, mas o autor aproveitou nela o que podia aproveitar do fato a que aludiu.

 

E com isto deixo o leitor, que arderá por ir tomar parte na folgança destes três dias, a não ser que, como eu, olhe para estas coisas de mascarados como uma distração muito vulgar. Em verdade, será preciso esperar o carnaval para ver mascarados? Há muita gente que, apenas o Sr. Laemmert publica as suas folhinhas, corre a ver em que época é o carnaval. Essa gente é de patriarcal simplicidade. O carnaval desta terra é constante, e é a política que nos oferece o espetáculo de um continuo disfarce e dansatriz farofia, como dizia Filinto.

 

Se pensas como eu, ó serio leitor, limita-te a ver passar os que se divertem, e vai depois entreter o resto da noite com a leitura do livro que imortalizou Erasmo.

 

 

 

24 DE MARÇO DE 1862.

 

O dia 25 de Março. — A revolução. — Toleima ou esperteza? — Os gansos. — Sá de Miranda. — A pólvora. — Publicações literárias. Biblioteca Brasileira e o Futuro. — Publicação política, o Jornal do Povo.

 

É amanhã a inauguração da memória do Rocio. É também amanhã o aniversário da proclamação da nossa carta política. Por ultimo, na opinião do ministério, é amanhã a realização de uma revolta popular, preparada pelos chefes liberais à bem de se apossarem do governo.

 

Nada direi do aniversário que festejamos, mesmo por não entrar na apreciação dos atos pecaminosos que hão desvirtuado o nosso código político. Não me autorizarei mesmo de uma circunstância que alguém notou, a de estar a figura do primeiro imperador, que hoje se há de descobrir, com a constituição estendida para o lado do teatro, querendo daí concluir o malévolo que o pacto fundamental é uma comédia.

 

Tão pouco me ocuparei com a estátua que se vai inaugurar.

 

Fora preciso recorrer aos fastos da história e cotejar atos e apreciações, talvez em detrimento de opinião aceita, e por mal das constituições públicas e solenes, que o sol da manhã vai presenciar.

 

Já não pratico assim com o boato da revolução. Devo investigar se o ministério com estas precauções que toma, e com estes boatos que assoalha, tende à parvoíce ou à esperteza. É difícil o problema. Existem ambos os elementos no gabinete, e decidir qual deles prepondera na questão, é um trabalho de minuciosa análise.

 

Por onde descobriria o ministério que o dia 25 seria ensangüentado pelos dentes do tigre popular? Onde encontrou sintomas denunciantes? Na imprensa? Não. Nunca ela foi mais moderada, nem mais sóbria no apontar os erros administrativos.

 

Nenhuma doutrina que cheire a subversão tem sido alardeada e proclamada nas folhas liberais. Nos clubes? Onde existem eles? Onde se reúnem? Ninguém os conhece. O ministério compreende bem que uma revolução, no sentido literal da palavra, pede o concurso da maioria, e que esse concurso não deve ser eventual e filho do momento.

 

Pouco depois das eleições o ministro do império do gabinete Ferraz exigiu mudança de política de reação, em vista da situação que, na opinião dele, tendia à anarquia. Esta exigência, que era simplesmente uma pose do ministro novato, tinha uma razão de ser; acabava-se de uma eleição altamente pleiteada, e o nobre ministro, depois do que havia presenciado, concluiu que o país estava fora dos eixos. Aproveitou a circunstância e quis fazer figura. E fez.

 

Hoje, porém, que a situação está calma, ou para me servir do vocabulário do Sr. Ministro da Marinha está em calmaria podre, será admissível, sem querer passar por tolo, a suspeita de uma revolução?

 

Não suponho que o ministério ande de boa fé nestes sustos e temores de revolução; creio em outros motivos menos inocentes, mas por ventura menos humilhantes.

 

Reza a história de uns gansos que salvaram por seus grasnos a integridade da cidade eterna. Também vigiam gansos o nosso Capitólio? Mas estes, cansados há tanto de espreitar, sem nada verem chegar, e querendo a todo custo dar testemunho de sua vigilância, gritam um belo dia por socorro e clamam pela salvação de Roma. Mas Roma está tranqüila, nenhum inimigo lhe assoma às portas; César dorme tranqüilo no afeto e na dedicação da cidade-rainha. Nada acontecerá, mas a suspeita pôde ficar para o futuro, e os gansos terão feito uns bonitos papéis.

 

Que tal? O meio é seguro para ganhar conceito em ânimos augustos. É assim que estes piolhos se metem pelas costuras. Mas os príncipes devem ser versados e sabedores das coisas passadas. Foi a respeito desses tais enliçadores que Sá de Miranda escreveu estes versos na sua carta a D. João III:

 

Senhor, hei-vos de falar

(Vossa mansidão me esforça)

Claro o que posso alcançar;

Andam para vos tomar

Por manhas, que não por força.

 

Alguns fatos poderiam demover-me da opinião em que estou de que o ministério quer provar amores assoalhando calculadas fantasias. Tal é, por exemplo, o da apreensão de alguns barris de pólvora em várias casas.

 

Mas a Atualidade explica a origem desta apreensão que tanto alarma causou, e com as quais quer o ministério afetar que descobriu os conspiradores. Foi apenas uma denúncia de proprietário incomodado pela vizinhança de fabricantes de fósforos.

 

Demais, fazem-se durante o ano tantas apreensões de pólvora, que estas não devem por modo merecer o mais leve reparo.

 

Insisto na minha apreciação; o ministério estéril, tacanho, ramerraneiro, como é, busca a confiança imperial na prevenção de revoltas imaginárias.

 

E o jogo é bonito e fino. Passando, como há de passar, o dia 25 sem demonstração alguma, é ao terror das medidas anteriormente tomadas que se atribuirá a tranqüilidade da festa.

 

Voltemos, porém, de rumo.

 

Deixemos de vez essas demências políticas que, por justo título, fazem do nosso país a fábula dos folhetinistas do resto do mundo.

 

Outra parte nos chama, amigo leitor, a da mocidade estudiosa, trabalhadeira, esperança de melhor futuro.

 

Pode dizer-se que o nosso movimento literário é dos mais insignificantes possíveis. Poucos livros se publicam e ainda menos se lêem. Aprecia-se muito a leitura superficial e palhenta, do mal travado e bem acidentado romance, mas não passa daí o pecúlio literário do povo.

 

É no meio desta situação que se anunciam duas publicações literárias: Biblioteca Brasileira, publicação mensal de um volume de literatura ou de ciência, de autores nacionais, e o Futuro, revista quinzenal e redigida por brasileiros e portugueses.

 

Vamos por partes. A Biblioteca é dirigida por uma associação de homens de letras. Tem por fim dar publicidade a todas as obras inéditas de autores nacionais e difundir por este modo a instrução literária que falta à máxima parte dos leitores.

 

Como se vê, serve ela a dois interesses: ao dos autores, a quem dá a mão, garantindo como base da publicação de suas obras uma circulação forçada; e ao do público, a quem dá, por módica retribuição, a posse de um bom livro cada mês.

 

Com tais bases, não há negar que entra nesta instituição de envolta com o sentimento literário muito sentimento patriótico. Em que pese aos que fazem limitar a pátria pelo horizonte das suas aspirações pessoais, é assim. E são destes serviços ao país que mais fecundam no futuro.

 

Esclarecer o espírito do povo de modo a fazer idéias e convicções disso que ainda lhe não passa de instintos, é, por assim dizer, formar o povo.

 

Do esforço individual e coletivo dos que se dão ao cultivo das letras é que nascerão esses resultados necessários. O piano da Biblioteca Brasileira, cômodo e simples, oferece um bom caminho para ir ter aos desejados fins, e é já um auxiliar valente de idéias que se põe em campo.

 

O Futuro, revista que aparecerá cada quinzena, é mais um laço de união entre a nação brasileira e a nação portuguesa. Muitas razões pedem esta intimidade entre dois povos, que, esquecendo passadas e fatais divergências, só podem, só devem ter um desejo, o de engrandecer a língua que falam, e que muitos engenhos têm honrado.

 

O Futuro, concebido sobre uma larga base, é uma publicação séria e porventura será duradoura. Tem elementos para isso. A natureza dos escritos que requer um folheto de trinta páginas, publicado cada quinzena, muitos dos nomes que se me diz farão parte da redação, entre os quais figura o do velho mestre Herculano, e a inteligência diretora e proprietária da publicação, o filho direto do autor do Bilhar, F. X. de Novaes, dão ao Futuro um caráter de viabilidade e duração.

 

Este abraço literário virá confirmar o abraço político das duas nações. Não é por certo no campo da inteligência que se devem consagrar essas divisões que são repelidas hoje.

 

Os destinos da língua portuguesa figuram-se brilhantes; não individuemos os esforços; o princípio social de que a união faz a força é também uma verdade nos domínios intelectuais e deve ser a divisa das duas literaturas.

 

Para 7 de abril anuncia-se a publicação de um jornal político que terá por titulo Jornal do Povo.

 

É redigido por dois talentos jovens, mas que já fizeram as suas primeiras armas nesta liça da imprensa. O Jornal do Povo não representa escola alguma, não acompanha princípios estatuídos de nenhuma parcialidade política. É simplesmente um jornal consagrado a doutrinar o povo e a pugnar pelos interesses dele.

 

Sendo assim o Jornal do Povo será logicamente conduzido a pôr-se ao lado liberal que corresponde imediatamente às aspirações populares.

 

E o concurso dele será tanto mais valioso quanto que não pode haver dúvida sobre as opiniões liberais de seus redatores.

 

 

 

1 DE ABRIL DE 1862.

Inauguração da estatua. — O adjetivo e a imprensa oficial. — Substantivos sem adjetivos. — Tranqüilidade pública. — Jantar em honra da estátua.

 

Está inaugurada a estatua eqüestre do primeiro imperador.

 

Os que a consideram como saldo de uma dívida nacional nadam hoje em júbilo e satisfação.

 

Os que, inquirindo a história, negam a esse bronze o caráter de uma legitima memória, filha da vontade nacional e do dever da posteridade, esses se reconhecem vencidos, e, como o filósofo antigo, querem apanhar, mas serem ouvidos.

 

Já é de mau agouro, se à ereção de um monumento que se diz derivar dos desejos unânimes do país precedeu uma discussão renhida, acompanhada de adesões e aplausos. O historiador futuro que quiser tirar dos debates da imprensa os elementos do seu estudo da história do império, há de vacilar sobre a expressão da memória que hoje domina a praça do Rocio.

 

A imprensa oficial, que parece haver arrematado para si toda a honestidade política, e que não consente aos cidadãos a discussão de uma obra que se levanta em nome da nação, caluniou a seu modo as intenções da imprensa oposicionista.

 

Mas o país sabe o que valem as arengas pagas das colunas anônimas do Jornal do Comércio.

 

O que é fato, é que a estátua se inaugurou e o bronze lá se acha no Rocio, com uma pirâmide de época civilizada, desafiando a ira dos tempos.

 

O Rocio vestia anteontem galas e louçanias desusadas.

 

As ruas por onde passou o préstito estavam ornadas de bandeiras e colchas, e juncadas de folhas odoríferas, segundo as exigências oficiais.

 

Mas sabe o leitor quem teve grande influência nas festas de anteontem? O adjetivo. Não ria, leitor, o adjetivo é uma grande força e um grande elemento! E ninguém melhor que os publicistas do Jornal do Comércio compreendem o valor que ele tem, e nem o emprega melhor.

 

Foi o adjetivo quem fez as despesas das arengas escritas anteriormente em defesa da estátua. Na apoteose, o adjetivo serviu de óleo cheiroso com que se incensou todas as virtudes duvidosas. Na censura, o adjetivo foi, por assim dizer, o suco venenoso com que aqueles bugres ungiram a ponta das suas flechas.

 

Bem empregado, com jeito e a tempo, como do ferro aconselha o poeta para tornar mezinha, o adjetivo fez nos artigos ministeriais um grande papel. Veja o leitor como esta palavra – imortal – veio sempre em auxílio de um substantivo desamparado de importância intrínseca. Se, por cansado, não podia ele aparecer mais vezes, lá vinha um ínclito, lá vinha um magnânimo, lá vinha um substantivo augusto. E outros e outros da mesma valia e peso.

 

Os artigos ministeriais reduzidos a verso podiam figurar entre as produções da Arcádia, do Caldas, sem quebra nem descor.

 

Não ria o leitor demasiado sério da importância destas considerações. Desconhecer o adjetivo monta o mesmo que desconhecer a luz.

 

O adjetivo foi introduzido nas línguas como uma imagem antecipada dos títulos honoríficos com que a civilização devia envergonhar os peitos nus e os nomes singelos dos heróis antigos.

 

Exemplo: um homem que usa do nome recebido na pia, é um substantivo. Se esse homem passa a ter uma adição honorífica fica sendo um substantivo e um adjetivo.

 

A festa de anteontem deixou muitos substantivos de boca aberta. Contava-se que muitos adjetivos chovessem. Mas houve só um.

 

E os substantivos desconsolados tiveram de ver-se desajetivados, com a esperança de uma adjetivação para mais tarde.

 

Oh! Dor!

 

É o mesmo que acontece às moças, que são substantivos, e andam à procura de maridos que são adjetivos. Para algumas passam os dias, os meses, os anos, sem que Himeneu, o grande escritor, venha ligar aquelas duas partes distanciadas.

 

E assim em muitas outras coisas da vida humana.

 

A festa não foi perturbada por nenhum movimento ainda o mais individual e alheio aos motivos propalados. Os sustos do ministério tiveram bem positivo desmentido diante da placidez com que este povo assistiu à inauguração da estátua.

 

Diante de algumas coragens, levantadas nestes dias de abatimento, fizeram crer que se tramava contra a ordem social. Não sei bem se isto é ridículo ou imoral. Em todo caso é uma dessas calúnias com que se vão servindo para os seus acatamentos e bajulações.

 

Diante da festa inaugural que outro fato poderá vir tomar parte nestes comentários? Não sei de nenhum. A festa encheu todo o tempo e todos os espíritos.

 

Continuou ela ontem e termina hoje. Tem o povo com que regalar-se. E bom é quando lhe concedem à farta a segunda parte da exigência do povo romano.

 

É verdade que também não se lhes nega a primeira. Anuncia-se para hoje um grande jantar no salão do teatro lírico, para o qual são convidadas as pessoas de todas as classes que concordam com as arengas da folha oficial, a bem de concluir a festa pelos prazeres da boca.

 

Mas nem isto defenderá melhor a idéia.

 

Os jantares pertencem ao número das coisas mais transitórias que é dado ao homem encontrar.

 

Ao meu leitor, se lá for, peço um brinde em desconto do desalinho destes comentários.

 

 

 

5 DE MAIO DE 1862.

Cavaco – o que vai a câmara fazer? – Uns versos.

 

Era um dia ...

 

Não vou bem. Este exórdio dá ares de história de criança, dessas que eu ouvia à ama, nos tempos que lá vão, quando não me lembrava de fazer comentários, e nem de ser lido pelos leitores do Diário, no pressuposto de que sou lido.

 

O que queria dizer, e que tão mal encabecei, era que havia há tempos uma revista semanal que eu publicava mais ou menos regularmente, comentando inocentemente as ocorrências notáveis de cada semana.

 

Motivo que não entram no domínio do público interromperam por longas semanas a publicação dos Comentários que de novo tomo e por cuja regularidade respondo.

 

Não será por falta de matéria que eu deixe de comunicar todas as segundas-feiras ao meu leitor a opinião que formar acerca das ocorrências da semana anterior.

 

Abrangendo o escrito, por sua natureza, muitos fatos e muitas esferas, à política cabe a parte principal, atenta à gravidade da situação e das questões a ventilar.

 

Em um país onde as censuras da imprensa oposicionista se respondem com a personalidade, não é por certo fora das câmaras que a vida política se pode manifestar. Mas as câmaras se abriram. O país por meio de seus órgãos vai perguntar ao governo o que há feito na ausência do corpo legislativo, de que questões tratou, que problema resolveu, se tem planos financeiros estudados e formulados; até onde lança as suas vistas políticas e administrativas.

 

Por sua vez o corpo legislativo é chamado a contribuir por si para que se defina esta situação confusa, marasmática, sem cor, nem alcance.

 

Este trabalho é longo e pede o concurso do patriotismo. É questão de ser ou não ser. Cabe às câmaras provar que o gabinete por inepto não pôde continuar na gerência do país, e que não é para fazer um regulamento de condecorações e outras ridicularidades que se põem sete homens a testa da governança de um império.

 

Não é assim de um assalto que se tomam graves e importantes funções. A glória tem seus percalços e é preciso ganhá-la à custa de vigílias e estudos, e não (passem-me pela frase que é de boa laia e adequada) e não à barba longa.

 

Se o exame do corpo legislativo não for profundo e patriótico, renunciemos à esperança de termos um país e um governo, porque com ministérios tais, não há país que prospere, nem situação que resista.

 

É diante de tais deveres, mais urgentes agora, que o corpo legislativo se abriu.

 

Isto quanto à parte política, e como vê o meu leitor, é vasto e farto o campo, se for olhado do seu verdadeiro ponto de vista.

 

Não falta onde se vá buscar matéria para comentário, e além das ocorrências acidentais e imprevistas, há muito onde ceifar à larga, se me permitem esta expressão roída pelo uso.

 

Estas linhas que aí deixo não deviam vir encabeçadas pelo título que lhes pus, porque na realidade de nada da semana me ocupo. Isto é uma espécie de prefácio, uma como oração de romeiro que se dispõe a atravessar o deserto depois de uma estação.

 

Alá me seja propício e arrede da minha cabeça e da minha caravana os flagelos do tempo e o encontro dos beduínos.

 

Ponho fecho a estas linhas com a transcrição de uma carta e de uma poesia que me enviou um cultor das musas:

 

“Meu amigo, — Abandonado no caminho da vida com o coração vazio das louras crenças que nos povoam a alma, quando o céu é para nós todo de um azul sem nuvens e o horizonte dessa cor de rosa de que vestimos todas as aspirações do espírito, apraz-me ás vezes em trazer à memória os dias do meu passado, desse passado que vi cair na imensidão do nada, como essas centelhas de luz que morrem na escuridão das trevas.

 

“E' triste este viver assim, quando ainda em meia vida, o espírito cansado se volve ao passado procurando embeber-se dele, porque o futuro está morto, ou pelo menos despido de todas as ilusões da juventude!”

 

 Em um desses momentos atirei sobre o papel estas linhas que te envio . . .

 

Ei-las

 

Amei na aurora da vida,

E morro da vida em flor,

É sempre assim a existência:

Ao riso sucede a dor.

 

Desfolhei rosas sem conta,

Perfumes mil respirei;

E nessa luta de afetos

Nem um sincero encontrei

 

Minha alma descreu de tudo,

Dos sonhos de que viveu,

Centelha de luz perdida,

Suspiro que além morreu!

 

Bethencout da Silva.